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7/26/14

GERAÇÃO ESQUECIDA

(Clique na imagem para ampliar)

O mato é verde como a esperança,
denso e forte como a paixão,
cheira a catinga e a feitiçaria,
a queimadas vermelhas na escuridão.
O mato é um céu aberto,
uma prisão com canos escondidos,
o limite de quem não se sente liberto,
um poema de gritos e gemidos.
O mato é música e sensualidade,
negra desnudada num banho de sol,
cabelo enrolado como um caracol,
a gritar e a correr em liberdade.
O mato é o medo que se escapa pelos trilhos,
a desconfiança aos camuflados que chegam,
a fera com cio vagueando desvairada,
suor da arte maconde ainda não prostituída,
O mato é o silêncio duma espera
a angústia sofredora de quem desespera,
tiroteio rasgando em carne viva.
O mato é a castanha de cajú,
água do coco e papaias do desejo,
caçadas de reis sem roque e sem reino,
armas em brasa na guerra sem leis.

E em África jovens se gastaram,
em tempo dobrado esperaram,
que não fosse preciso matar e morrer
para que os homens se entendessem.
Choravam pelos filhos que nasciam
pelos amigos que morriam,
e eles matando e sobrevivendo
e eles ferindo-se e morrendo.
Tinham na Alemanha próteses à espera,
na pele o sol e a chuva,
na alma uma fartura de mato,
nas mãos o cheiro do capim,
nos dedos os calos do gatilho,
nos olhos a lonjura da savana,
na saudade a viagem do regresso,
no coração a surpresa da cilada,
nos ouvidos os assobios das balas,
em Alcoitão cadeiras de rodas,
em Artilharia Um o desalento triste,
nos cemitérios valas já prontas,
nos pés arrastavam o cansaço,
no pensamento silenciavam PORQUÊ?
no corpo o desejo de amar da idade,
conforme o sorriso dos lábios e a vontade
de abraçar a mulher tão longe, tão distante.

Geração esquecida pelo antigo mando,
silenciada pelo novo mando,
por todos os mandos imprestáveis,
por todos os mandos sem orgulho,
sem raiva e sem mãos limpas.

Continuaremos a ser a geração
Sem diamantes nos dedos
e sem presas na arrecadação.

- M. Nogueira Borges*, Porto. Escrito em junho de 1978. Atualizado em Julho de 2014.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog Escritos do Douro. Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

1/20/14

Relendo Nogueira Borges: OS IGNORADOS

Falo-vos da África dos matos sem fim,
Dos ecos perdidos no capim,
Das picadas vermelhas mas livres,
Tão livres como a liberdade.
Em cada curva uma palmeira,
Em cada lugar uma saudade,
Em cada sorriso uma clareira
De brancura e de amizade.

Falo-vos das noites de encantamento,
Das queimadas para lá do pensamento,
Da lua a beijar a baía de Pemba,
Do batuque e das esteiras na temba
Onde o meu corpo se satisfazia
Em outro corpo que, depois, dizia:
« São cinco quinhentas, patrão! »
E eu, cá dentro, aqui onde bate o coração,
Nem sei o que sentia.
Só sei que, depois, voltava
Com mais quinhentas na mão,
Roído pelo tédio e a solidão.

Falo-vos dos poemas proibidos,
Alguns esquecidos,
Outros lembrados
E agora publicados.

Falo-vos dos loucos a berrarem no entardecer,
Das sentinelas a dispararem para a escuridão
Com o medo aos saltos, na indecisão
Da manhã que não se sabe se vai nascer.

Falo-vos dos rios em que lavei o rosto,
Matei a sede ao sol- posto,
Gritei que não queria a guerra,
Mas não desertaria da minha terra.

Falo-vos da África onde não voltarei
Para matar a fome das minhas recordações,
Abraçar os irmãos que deixei
E lamber as feridas de todas as desilusões.

Falo-vos da África dos nossos soldados,
Dos seus sorrisos e dos seus abraços,
Uns, já mortos, outros, vivos-despedaçados,
Mas, todos eles, ignorados.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".

*Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google. Manuel Coutinho Nogueira Borges, foi Alferes Milº. do Comando de Agrupamento 1985 - Moçambique (Quelimane e Porto Amélia)de 1967 a 1969 e faleceu no dia 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia - Portugal.
Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustratrativa acima representa parte do Parque Tsavo no Quénia/África e foi recolhida no site "Viajologia-Época-Viajando com Haroldo Castro". 

Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "ForEver PEMBA" em Janeiro de 2014. Este artigo pertence ao blogue ForEver PEMBA. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores.

12/08/13

LEMBRANÇA DE NATAL

Fixo-me nesta pedra tumular, branca-escura de quantos lustres, ervas à espreita misturadas com cera derretida e flores campestres caídas de uma jarra. Debruço-me no gradeado que delimita o jazigo e penso: “A minha geração paternal está toda aqui, com o meu Pai à frente, há mais tempo do que eu tenho de vida. Estão no silêncio da eternidade, indefesos, noites e dias sem uma Avé-Maria, sequer um ciciar dos que não esquecem. Uns, partiram, ainda jovens, sem a oportunidade de um arrependimento, um adeus; outros, velhos, cansados de tanto esperarem. O meu Pai foi sem ouvir o meu primeiro vagido (imaginou-me apenas), derrotado pela doença maldita a que chamam prolongada. Morreu sem me beijar, fazer uma festa na moleirinha, pegar-me ao colo, imaginar parecenças, mudar-me uma fralda, alvitrar um nome baptismal, embalar um sono, viver a maior seriedade amorosa da existência.

O que faz, afinal, a ilusão da vida? O que a dimensiona na escassez ou na lonjura dos anos? É a substância da dádiva e do amor, mesmo na brevidade biológica, ou o vazio desafectado no prolongamento biográfico? A vida nem ao menos tem lógica. Há quem morra sem uma ruga, com o sol e o pranto a adornar a despedida; há quem parta encolhido por remorsos velhos sem uma réstia de deixar saudades.

Morreu-me antes do tempo, sem tempo para lhe pedir um conselho, uns tostões para rebuçados ou para uma bola de futebol, para divergirmos quando não estivéssemos de acordo, para nos amarmos, sempre, até o sangue secar.

Aqui estou, só, com um sol fraquinho encoberto pelas nuvens de Dezembro a lembrar o Natal. Um Natal que nunca partilhei com ele e já nada me diz porque o transformaram numa hipocrisia, numa feira de vaidades, num símbolo pagão, materialista, sem solidariedade e sem virtude. Resta-nos as cruzes dos Cristos vivos e mortos, exemplos e memórias contra o ódio e a inveja que nos consomem. Um dia aqui estarei desde o nascimento sem ti até à morte contigo “. 

Um vento agreste varre o alto da Corredoura. O sussurro da folhagem dos eucaliptos acentua o abandono do palacete envelhecido onde brinquei em criança, diante do qual encolho um grito inominável e pergunto por que vendem os homens as histórias das suas vidas? Lá ao fundo, para os lados de Rio Bom, há uma paisagem amarelecida, desamparada, com os fumos das chaminés a acentuar o deserto dos caminhos. O Douro, esse, não morre, continua a correr, leva nostalgias, sonhos e destroços. Há muitos Meninos Jesus na encosta-presépio de Loureiro, mas eu nunca tive um Pai Natal Vivo.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

7/31/13

SEM REMORSO

Ia com os filhos pelas mãos naquela tarde limpa de Setembro. Ainda era Verão e a cidade estava uma desordem. Os carros atrapalhavam-se, as pessoas amontoavam-se, as vozes confundiam-se. Não tinha para onde ir. As praias, sem nortadas, ficavam longe. Os filhos iam-lhe pedir balões e bolas de berlim; talvez, quem sabe, legos e bonecas; ou, até, quisessem ir ver a Pantera Cor de Rosa no cinema da Praça.

A cidade era uma serra cimentada, de sobe e desce, muitos ruídos e cheiros. As mãos suavam. Havia carros que chispavam a arrancarem com ódio nos pneus. Por isso suava; o medo faz suar. As montras tinham saldos, coisas desejadas por quem anda sempre com a mesma roupa e a mesma fome das coisas. Estava calor, os filhos pediram água. Entraram num snack-bar e sentaram-se num canto. A filha bateu-lhe com a mão: «Já viste aquela mulher com as pernas à mostra?»; «Já.», abreviou. Pediu dois refrigerantes para os três. Contou o troco, contava sempre o troco. «Não quereis um bolo?», perguntou; «Então, tu é que sabes.», responderam. Comprou dois bolos com os trocos, o maldito tanto vem como vai. Cá fora as pessoas espionavam-se. Os gigolos encostavam-se às portas das boutiques, despiam as mulheres, mastigavam pastilha elástica ou fumavam para o ar. Não era uma cidade americana ou talvez fosse. As cidades já não têm personalidade. Pedintes, com as próteses ao sol, choramingavam esmolas; cegos tocavam acordeon e batiam no chão com as bengalas metálicas. Não era uma cidade africana ou talvez fosse. As cidades são, cada vez mais, o fim do mundo, por isso elas se povoam, à noite, de fantasmas, que os que trabalham de dia escondem-se nos dormitórios das periferias. Vendedores de banha da cobra impingiam tudo, desde fios de ouro a duzentos escudos a espremedores de laranjas a dez. Não era uma cidade persa ou talvez fosse. Todas as cidades têm a confusão institucionalizada. Às paredes colavam-se palavras de raiva com símbolos em volta, carros, com altifalantes, cuspiam frases sem sentido, voavam pelas ruas com asas de bandeiras coloridas; havia quem acenasse ou fizesse manguitos. Um pouco à frente, as pessoas esmurravam-se, não sabiam em quem batiam, nelas próprias ou no rancor que as dilacerava. Os filhos quiseram saber o que era aquilo. «È a falta de amor.», filosofou; «Mas eles não se conhecem....», contrapôs o filho; «Pois não, se se conhecessem abraçavam-se.», enfatizou.

Era uma cidade de ruas compridas como rectos gigantes, estômagos de úlceras em movimento, úteros rasgados pela violência da pressa, labirintos de vigaristas e proxenetas. As ruas da cidade são a revolta de quem trabalha, o tédio do desempregado, o ócio dos desocupados; são os consultórios das doenças, os escarros da bronquite e da má educação, a sujeira da demagogia.

(Se tu fosses vivo, meu Avô, os meus filhos andariam contigo. Não precisarias de bengala. Eles seriam a tua esperança para te agarrares à vida. Seriam a minha gratidão por te lembrares de mim e, portanto, deles. Recordo-te, meu Avô inesquecível, com os meus filhos presos às minhas mãos, aquelas mãos que tu agarravas sem poderes falar, mal adivinhaste a morte naquele dia em que caíste à cama para nunca mais te levantares. Recordo-te pelas vindimas com as rogas a cantarem e a dançarem a chula, as concertinas pelos caminhos da nossa aldeia, os ferrinhos e os bombos nas pousas da meia noite. As vindimas agora são de empreitada como quem ajusta um muro de pedra, uma pintadela de oca nas paredes da casa, um esmalte no portão; não têm alegria nem cheiro, morreram contigo; os lagares servem para guardar tralha que se não usa mas não se deita fora, que, apesar de tudo, ainda há os sabem que quem guarda tem. Por que me deixaste tão cedo? Não viveste até à minha primeira barba? Lembro-me da tua serenidade à vaidade alheia e da tua firmeza ao desperdício; da tua quinta enorme como um convento de ordem religiosa com aqueles pomares, aquelas matas e aquelas vinhas, aqueles tanques e aquelas fontes, aquela taça repleta de peixes de várias cores, aquelas tílias com troncos de séculos e aqueles estábulos de estrume. Recordo-me de tudo porque eras tu que me davas o espaço e o tempo. Deixaste-me nesta balbúrdia em que conto um outro espaço e um diferente tempo para chegar junto de ti).

«Que tens nos olhos?...», notou-lhe a filha; «São as lentes que não devem estar bem, o sol é forte e põe-me os olhos vermelhos.», desenvencilhou-se. Comprou dois balões, encheu-os até à saliva, largou-os. Subiram à altura dos prédios, para cima deles, para o desaparecimento. As pessoas iam e vinham num ió-ió mole e denso. Um ídolo de futebol antigo despertou a curiosidade: nos olhos um vazio de aplausos, no andar o jeito arqueado que lhe ficou das fintas dominicais, no rosto as rugas da velhice sem exercício; no seu todo uma frustração de quem só presta para publicidade. Os bancos já estavam encerrados, o sol enfraquecera, as paragens dos autocarros amontoavam-se de bocas mudas.

Ia com os filhos pelas mãos certo de que um dia eles se desprenderiam como os balões, se esqueceriam dele, arquivando-o num Lar qualquer para morrer de velho e de solidão. Talvez, mas o remorso não seria seu.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado em 12 de Março de 2011 (Sábado), pelas 15 h, na Casa-Museu Teixeira Lopes, 32, Vila Nova de Gaia (perto da Câmara Municipal de Gaia). Convite e informações aqui.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Portugal. Faleceu em 27 de Junho de 2012. A imagem ilustrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada para este blogue e poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

5/25/13

O DESERTOR

Saíra de Pargal, com os Pais, ainda o orvalho vestia os montes. Almoçaram em Coimbra, num restaurante para os lados de Santa Clara, com as ruas repletas de capas a caminho do Municipal. Teve vontade de dizer-lhes que ficava ali, que não ia para Quartel nenhum, porque o seu tempo era de fogo e não de cinza.

Engoliu o bife que o estômago pedia numa necessidade animal, mas, lá fora, estava a alegria que lhe saciava todas as fomes. Quando recomeçaram a viagem, qual penitência sem pecado, os ecos estudantis soaram-lhe como um desaforo na imensidão do seu descontentamento.

Aqueles não se localizavam ali, mas na Baixa Portuense, nos Cafés Piolho, Diu ou Estrela, na Cedofeita das meninas das sapatarias ou na Santa Catarina dos discos e do Majestic. Eram, porém, iguais, porque o desafio da liberdade amordaçada não tinha cores nem diferenças.

Durante a viagem, o Pai, apagado funcionário público na Repartição Concelhia, preleccionava sobre o brio e a honra de servir a Pátria. A Mãe, Professora Primária na aldeia da sua nascença, cansada de berrar às impertinências da canalhada, geria o silêncio como se poupasse a voz para a obrigação profissional. De vez em quando, num hífen de abrandamento, lá aconchegava: «Há-de correr tudo bem, meu Filho. Vais ver...», num tom de resignação. Ele ia calado, encostado ao vidro, com o braço apoiado no bordo do assento traseiro, a mão no queixo, olhando lá para fora, a chuva a ameaçar, pensando para si. O que lhe apetecia não o deveria dizer; fora criado numa natural tradição familiar que é, muitas vezes, um filicídio ético mas sempre imaculado, pois nenhum dolo ou aversão cabem no amor do sangue. Filho único, educado em Colégios Jesuíticos e frequência interrompida na Faculdade de Economia do Porto, aprendera que a filiação, mais do que uma circunstância, é uma procedência e uma mercê. Para os Pais, sem bens ao luar ou cofre de segredo, Silvestre fora o seu sonho e a sua razão que, com a soma de ordenados parcos, lhe exemplificavam a generosidade sem preço. Mais que reverência, devia-lhes gratidão que é um afecto dobrado. Abdicara, por eles, de uma deserção aventureira sem data de regresso e o Povo, grosseiro, a atirar-lhes com o ferrete: «Olha os Pais do cagão!»

O jantar, na Ponderosa, foi despachado e silencioso. Compraram um pão de ló húmido, imagem de marca da casa, para lhe adoçar as primeiras horas. Aproximava-se o fim da viagem, Torres Vedras estava perto, e ele até pedia que a estrada não tivesse fim.

À entrada de Mafra, no cruzamento para a Ericeira, recebeu-os uma chuva tão impiedosa, forte e perversa, que nunca mais esqueceu aquela noite de domingo: 11 de Janeiro de 1966. A força da água, com um barulho ensurdecedor, fazia temer pela capota do velho Opel. O nevoeiro, que aquela levantava no Largo da Vila, mal deixava ver os contornos da ostentação de El-Rei D. João V. Só as luzes de dois cafés-restaurantes, do lado contrário, esbatidas pelas montras vaporadas, davam sinal de vida.

Contornaram o terreiro, virando à esquerda na direcção da Porta de Armas, e encostaram na confiança de que a bátega amainasse. Numa porta lateral frinchava uma luz morrediça de velório. Soube que era por ali que teria de entrar quando um táxi se lhes encostou para largar um rapaz de mala na mão. Devia-se apresentar até à meianoite; não tinha vontade nenhuma de se apressar, mas, quando a chuva passou a morrinha, despediu-se dos Pais, pegou na mala, “se tem de ser que seja!“ , correu para a porta, deu-lhe um pontapé, ficou um instante a dizer adeus, e fechou-a com o calcanhar. Deparou-se-lhe, num cheiro de gruta bafienta, uma encenação farsista: do tecto, alto e arqueado, pendiam redes mosquiteiras; no chão, de lajes polidas por muitas botas, grupos de mauzers ensarilhadas com capacetes que vira nos filmes da segunda guerra mundial; pelas paredes escorria uma humidade sórdida, exsudando salitre e desolação. O Sargento que o recebeu tinha uma cara de cera e uma barriga de momo.

Entregou-lhe a guia e o bilhete de identidade, assinou uns papéis e ouviu: «A partir de agora passa a ser o soldado cadete 779 barra 66! Escutou bem o que lhe disse ou esses cabelos tapam-lhe as orelhas?! Ó pá! – virando-se para um soldado - leva aqui o nosso cadete à caserna 8!» Silvestre, sem pronunciar uma letra, olhou-o bem, leu-lhe o nome escrito no dólmen, pegou na mala e seguiu o soldado como um perdigueiro, percorrendo corredores e subindo escadas de catacumba, de luzes tão mortiças que pareciam morrões, enquanto repetia o nome do Sargento até o fixar: Franklim. Quando entrou no dormitório, de beliches alinhados, a varanda estava escancarada e o frio da noite misturava-se com os restos de lixívia. Enfiou o malão debaixo da cama, depois de tirar o pijama, perguntou se alguém se opunha a que fechasse as portadas, pendurou a roupa numa maçaneta do beliche, disse um «Boa noite, malta!», a aparentar desinibição, e deitou-se. Os lençóis tinham a tesura do gelo e o colchão o ruído e o cheiro da palha. O parceiro de cima não parava de se mexer e receou que aquela geringonça de ferro lhe desabasse em cima. Fechou os olhos e as lágrimas salgaram-lhe as olheiras. Desde aquela noite que Silvestre soube que nada, mesmo nada, seria como dantes.

No final de Junho, aprovado no Curso de Oficiais Milicianos, deram-lhe uma bicha de Aspirante e uma guia de marcha para ir, no Regimento de Infantaria 13, em Vila Real, ensinar recrutas com o que aprendera. Antes de partir, foi à Secretaria despedir-se do Sargento Franklim. «Felicidades! », disse-lhe. «Falta o cumprimento militar!», retorquiu Silvestre. Quando o Sargento, de sorriso trocista, lhe bateu a continência, correspondeu cheio de formalismo, deu meia volta e nunca mais lhe veria a cara nos seus anos de forçado.

Entre a Instrução e o toque de ordem o tempo passava célere que, bem vistas as coisas, comandar jovens obedientes e retardados entusiasmava e não crescia tempo para pensamentos reversivos. Depois, entre a Gomes, a Toca da Raposa e o Liceu Camilo Castelo Branco, era o deslizar dos flirts e das banalidades conversadas. Quando a discussão se atrevia por atalhos de mais leituras e contendas de alguma inteireza, o cansaço matava a vontade e desprezava a curiosidade. Silvestre, a pouco e pouco, dando-se conta mas sem fuga possível, engordurou a polidez, deixando-se arrastar para a vulgaridade reinante. Aos fins de semana, tirando aqueles em que a escala de serviço lhe impunha a clausura, metia-se na Cabanelas ou aproveitava a boleia do NSU do Quim, que, de gasolina dividida, não se importava de andar mais dez quilómetros para o deixar à porta de casa. Era a sua vingança. Dormia até lhe apetecer, comia o que a Mãe já sabia que ele gostava, lia o que ficara a meio, pensava e era feliz no silêncio da aldeia, deserta aos domingos. Às segundas feiras acordava de madrugada para, às oito, se apresentar, diante do Comandante da Companhia, com o pelotão alinhado.

Quando já pensava que se tinham esquecido dele, deram-lhe uns galões de Alferes e outra guia de marcha para se apresentar na Amadora, apeadeiro da viagem para Angola.

Esteve lá três meses a formar Companhia, com muita Ordem Unida para cimentar o espírito de corpo, umas sessões de tiro na Fonte da Telha, duas semanas de nomadização na Carregueira, uns crosses à volta da Reboleira e muita vadiagem no Cais do Sodré e pelo dédalo do Bairro Alto. Numa madrugada de Março, a parada encheu-se de Berlietes, atiraram lá para dentro com os trastes que restavam - os maiores já tinha ido, na noite anterior, para os porões do Pátria – e, cheios de café com leite a cheirar a mentol e pães com planta, foram em bando para o embarque.

Em Luanda mandaram-nos para o Grafanil e, ao fim de duas semanas, estava a caminho de Carmona.

Uma poeira vermelha envolvia a coluna que avançava sob um barulheira infernal de motores, os rostos dos homens mascarados por películas de espanto e de medo. Costas com costas, as coronhas das armas apoiadas nos beirais dos bancos corridos, colados às caixas das viaturas, todos sentiam que agora era a sério; os treinos e as teorias estavam enterradas no outro lado do mar. Sem divisas nem galões, despidos de carimbos graduados, o mando e a obediência eram feitos de nomes, conhecimentos antigos e, acima de tudo, de responsabilidades assumidas. Silvestre ia na cabina descoberta de um Unimog, perdido no meio da coluna, farolando o capim e a floresta de mistérios ocultos.

A restolhada das aves e os guinchos dos chimpazés disfarçavam a gelidez vertebral que lhe acrescentava um enjoo de agoniado; estava borrado de medo naquele corredor ocre e verde; olhou para trás e só o Cubano lhe piscou o olho num rosto de menino apreensivo.

Num sopapo, lá à frente – pareceu-lhe ser na cabeça da coluna -, ouve-se um estrondo de terra esventrada, as pernas dos que iam adiante saltaram para as bermas da picada, ele, pulando do assento, fez o mesmo e atulhou-se no meio de corpos em que o terror e o suor se confundiam. As rajadas para o desconhecido cessaram como quem refreia uma precipitação; uma serenidade absurda paralisou o lugar e um acre de pólvora elevou-se do chão. Silvestre não contou as horas que demoraram a reajustar o rebenta-minas, enquanto os enfermeiros cuidavam das pernas dos dois sorteados, nem da penetração na espessura da mata, mais cautelosa que ofensiva. O que Silvestre aprendeu, nessa tarde, foi que só há futuro quando se tem consciência da morte.

Em Março de 1969, novamente em Luanda, iniciou, no Vera Cruz, a viagem de regresso. Surpreendentemente, já nem sabia se ir ou ficar. A saudade do sangue misturava-se com um apelo insólito de aventura, uma paradoxal tentação de abismo, só dubiamente explicada pela rotina da violência e que dominou com as expectativas de uma vida para viver. Para trás ficava um passado que se lhe afigurou desnecessário, de mortos e feridos contabilizados para a estatística da guerra. Safara-se da vergonha desertora e das curvas de um mau fim. Sentia-se aliviado, mas, uma urgência de dúvida entristecia-lhe o olhar. Talvez fosse uma premonição ou um constrangimento de encarar o tal futuro que confiscara na sua intimidade.

No Porto, ainda voltou à Faculdade, mas ele já se deixara vencer pela servidão repetida, o desvanecimento dos olhos vidrados e o sangue coalhado dos corpos mutilados. Diante daquela verdura de generosa rebeldia, sentia-se fora de cena, envelhecido precocemente, invejoso, até, por recusarem o que ele aceitara. Por vezes, tinha vontade de esbofetear aquelas caras de magma que lhe davam a aparência de uma traição; outras, apetecia-lhe pegar num megafone, subir para os estrados e incendiar de malignidade tanta desorganização que criava ídolos de anfiteatros mas dispersava propósitos. Faltava-lhe a frequência do meio que se alimenta do que vem de trás, sem anciloses de experiências diferentes; sentia-se evitado pelos que lhe conheciam a condição como se ele pudesse ser um delator infiltrado em tamanha comunhão libertária.

Quando, numa manhã de Maio, abraçou, diante da porta da Faculdade, o Capitão que comandava a Polícia de Choque, seu amigo guerrilheiro de Angola, percebeu que o seu relógio se atrasara definitivamente. O coro de assobios e impropérios que ouviu, deram-lhe o golpe final. Silvestre entendeu que, mesmo na grandeza solidária, há inocentes agrilhoados.

Foi colaborador desportivo de um Jornal que o mandava, aos domingos de manhã, fazer reportagens de Atletismo e, à tarde, nos fins dos jogos, ouvir aquelas declarações patéticas dos futebolistas e treinadores num ambiente de vapor de água e óleos de aquecer músculos; revisor de provas num Editora especializada em livros vermelhos e publicitário sem jeito para vender detergentes. Concorreu, então, ao totobola bancário,
inscrevendo-se em todos os Bancos da Praça. Bateu, em vão, a algumas portas e gabinetes, de muitos galões em cima dos ombros, a que acedia por interposições de menor graduação. Quando o Pai se convenceu de que a desistência académica não era uma birra, falou com um seu antigo Chefe, agora colocado em Repartição Distrital, irmão de Administrador Financeiro. Ao fim de oito dias, feitos os exames psicotécnicos, entrava, de fato e gravata, no Banco. Silvestre ficou a saber que, num empenho, vale mais a sobriedade certeira do que o alarde disperso.

Deram-lhe uma secretária, um telefone, uma máquina de escrever e puseram-no a fazer débitos de letras. As teclas caíam no papel com tanta força que cortavam os químicos, parecia que tinha chumbo nos dedos. Na Agência, sem grande espaço, localizada numa zona de forte implantação industrial, havia dias em que uma longa fila se estendia, na rua, diante da porta. Quando ajudava ao balcão, o seu sorriso não se esforçava, antes se expandia numa satisfação recém-profissional. Conhecia pessoas e feitios, abastanças e dificuldades, modéstias e soberbas. Era espantoso observar o modo diferente como se lhe dirigiam os endinheirados e os desprovidos. Os primeiros, julgando-se donos do Banco, queriam logo tudo numa truculência de trato que raiava a humilhação; os segundos, como se pedintes dele, exageravam numa candura que o desajeitava. Quantas vezes, sem o distinguir, se achava entronizado de um poder que a gerência de dinheiro alheio intruja. Sentia-se pertença de uma casta respeitável que amarujava a especulação e a carência, simbiose que permite a coroação do mandato, a conjectura de que, além de útil, se é importante.

Um dia, a Luísa tomou-lhe o coração. Vinha de uma Agência de província em que muitas assinaturas eram feitas com a tinta dos carimbos nos dedos e «a menina não se importa de me preencher a livrança que eu mal sei assinar o nome?». Cegou-se com aqueles olhos de tranquilidade, duas evidências cerúleas que lhe lembraram os entardeceres sobre as águas calmas da baía de Luanda, quando, aproveitando todos os motivos, se safava à depressão de lá de cima. Calhou que ela se sentasse na sua frente e tivesse que lhe dar a conhecer as rotinas da função. Os seus olhares, sem cuidados de esconder franquezas, colaram-se na recíproca contemplação: o coup de foudre decidia-lhes as vidas. Encerradas as portas ao público, por entre pressas do fecho da Caixa e o adianto do expediente acumulado, deleitavam-se num jogo de sedução com ela a não conseguir disfarçar um rubor que para, Silvestre, era uma senha de docilidade e uma contra-senha de abrasamento. Começaram por almoçar juntos, ir e vir no mesmo autocarro, escolher os filmes mais condizentes com a paixão em crescendo, enriquecer a Companhia Telefónica com telefonemas de tempo esquecido e as gasolineiras com passeios de fim de semana em que o único rumo era um recato para matar a sede de um ardor sufocante.

Casaram-se, a um sábado de Agosto, numa Igreja Românica mais afamada pelos reptos paroquiais que pela memória das pedras. Cumpriram os lusitanos costumes e as práticas religiosas. Convidaram familiares e amigos de um lado e do outro; transmitiram felicidade – ela de véu e grinalda, ele de gravata de seda e fato preto quase smoking - a quem veio e a quem via; esgotaram-se rolos de fotógrafos; consumiu-se a cascata de marisco nos primeiros cinco minutos da boda; esticaram-se as horas nas apresentações e nas danças de salão. Quando, para lá das janelas, a noite se anunciou, escapuliram-se, legalizados que estavam perante o mundo, e só mudaram de roupas num hotel coimbrão. Viveram no calor da terra e do mar algarvios a realização do sonho, amaram-se até ao tutano e trocaram juras de amor eterno.

Regressaram às lides do Banco como dois guerreiros reconciliados no armistício de uma refrega carnal.

Durante algum tempo compartilharam o mesmo espaço, mas, tiveram que aceitar a transferência de um deles - a Luísa escolheu – para outro poiso, que a simultaneidade conjugal e funcional não era – disse-lhes quem mandava - boa conselheira nas apreciações hierárquicas. Silvestre retirou outro ensinamento: nada vence a frieza da lógica empresarial.

Quando o filho lhes nasceu já tinha nome, escolhido nos conciliábulos da espera: Júlio. Acorreram todas as ascendências e parentelas mais chegadas para palpitarem parecenças e aconselharem procedimentos num entusiasmo que só os nados conseguem juntar. Júlio cresceu, durante os primeiros anos, na alternância de uns avós que competiam na melopeia dos enlevos e lhe disputavam a afeição. Os Pais via-os de manhã sempre cheios de pressa e à noite sempre fartos de cansaço. O quarto, a abarrotar de brinquedos, era um hiato no seu trajecto dividido pelas casas avoengas. Para onde quer que fosse, encontrava sempre um novo mimo como uma aliciação que ele não racionalizava, mas, chantagiava em perrices sempre contentadas.

Chegada a idade escolar foi para um Colégio que o levava e trazia numa carrinha. Por lá andou até os primeiros pêlos lhe despontarem na cara. Exigiu roupas de marca e serviram-nas; pediu moto e teve-a; desejou férias de Páscoa nas discotecas algarvias e foi; pediu vezes sem conta dinheiro e deram-lho, desrespeitou horas de chegada nos sábados da Ribeira, da Foz ou da Via Norte e ninguém se atreveu a lembrá-lo; havia manhãs de domingo em que a cama estava intacta e quando os Pais almoçavam ele ia dormir.

Silvestre, a pouco e pouco, sentiu-se atraiçoado como se uma navalha lhe dilacerasse a boa fé. Virava-se para a mulher a berrar que o tinham estragado, mas, esta, como se um fanatismo lhe impedisse o discernimento, recriminava-o pelo exagero e até fazia por esquecer a falta de umas peças em ouro que nunca mais voltavam à sua cómoda. Silvestre fingia normalidade. Os hábitos de fim de semana, porém, transformaram-se nos dias todos. O Júlio chegava a casa macerado, inquieto, enfermiço, de olhar turvo e longínquo, escudando a recusa de comer com a abundância de um lanche tardio, uma dor de cabeça destemperada, um namoro desfeito, uma necessidade de estar só. Quando o alarme tocou, deram-se conta de que haviam acordado tarde. Da caixa do correio retirou uma carta colegial em que lhe eram comunicadas as repetidas faltas do filho. No dia seguinte, telefonou para a Agência a dizer que estava doente, estava mesmo, e seguiu os passos do Júlio. Desabafou com o Director Escolar as suas perplexidades, aliviou-se um pouco quando lhe confirmou a presença do filho nas aulas, mas, entendeu as palavras entremeadas daquele.

Sentou-se no Café da esquina a observar os passantes e atento ao relógio. O Júlio transpôs os portões no fim da manhã, confundido no turbilhão das correrias e dos risos. Apartado, num grupo de mais três, tinha o ar de quem não pertencia ali. Subitamente, Silvestre viu-se no meio de muitas sirenes e campainhas de que desconhecia o som, gelado e a transpirar como quando o paludismo o prostrou, sem forças, numa cama africana, em delíquio nunca esquecido; julgou-se a correr para o filho, arrancar-lhe aquele cigarro, mas ele continuava colado à cadeira, sem reacção, estupidificado, uma confusão de gritos a rebentar-lhe na cabeça e no peito. Aquele cigarro do filho não era como os que ele fumava, o papel parecia uma tira ressequida, mal embrulhada, e o fumo, que lhe saía da boca e das narinas, meio azulado. Reparou que o grupo se desviou para um esconso do muro, que dava para um descampado de silvas, faziam gestos de trocas, que não conseguiu ver, e metiam as mãos nos bolsos.

Mal a Luísa chegou, ao fim da tarde, comunicou-lhe, depois das explicações do que vira, que iria afrontar o filho. A algazarra foi só dele. Ela, calada e chorosa, o filho, fechado e ausente, ouviram um Silvestre desesperado, que tanto esganiçava o seu ódio à sorte como implorava o amor do Júlio, até se deixar cair no sofá, enrodilhado em pranto. «Pai, quero-me tratar...», balbuciou ele, passados uns instantes, numa naturalidade tão seca que parecia uma decisão antiga, muitas vezes adiada e, finalmente, assumida. Uma interrupção de síncope esmagou a sala; eles incrédulos e mudos, o Júlio de olhos perdidos na alcatifa. O tempo parou dentro daquelas quatro paredes; ouviram-se os estalos da madeira como se os móveis se esticassem; a televisão, de som cortado, mostrava uma bulha de galos. Silvestre, recuperando do sufoco, ganhara uma esperança, mas, perdera a ilusão de que, afinal, tudo fosse mentira. Bem lá no fundo, misturada
com a desconfiança, ele ansiava por uma réstia que lhe mostrasse o seu engano; aquele «Pai, quero-me tratar...» era a confirmação do seu temor.

Recorreram a Médicos amigos e desconhecidos afamados, gastaram o que tinham e empenharam-se para o internar nos Centros mais díspares e caros. Correram para lá durante meses em calvário já encarado numa irremediabilidade. Era como se fossem visitá-lo a uma Cadeia. A Luísa, com o passar dos dias, perdia o seu olhar marinho que umas olheiras, de covas fundas, ajudavam a enegrecer; arranjava-se já não só por
hábito, mas, acima de tudo, para aparentar normalidade. Não gostava que lhe tocassem no assunto e, nos mais chegados, vertia todo o fel do seu infortúnio. Lembrava muito os seus tempos de infância feitos de bonecas de pano que a Mãe lhe fazia nas tardes mortas, dos passeios pelos caminhos da serra e das gargalhadas do Pai. Parecia-lhe que a vida passara depressa, abreviando-lhe a felicidade numa morte anunciada. Sobre Silvestre desabara o peso da cisma, a cólera que lhe consumia as entranhas, o ódio – um
ódio terrível – que lhe sustentava uma gana de desforço. Foi a um acampamento cigano comprar uma pistola e guardou-a por detrás de uma prateleira de livros. Esperaria a hora, o instante que só o Júlio podia ditar: se se erguesse ainda podia perdoar, se a decadência não tivesse solução iria a qualquer covil, dos muitos que já ouvira falar, onde se traficava a mistela, e atiraria sem ver, de olhos fechados, só pedindo que nem um tiro falhasse para não ir para a prisão com remorsos de deixar algum vivo. Faltaram-lhe as palavras, tinha dias em que só lhe apetecia ficar na cama, o pior era que não dormia, de nada lhe serviam os comprimidos que o Psiquiatra lhe receitara, a travesseira encharcava-se de choro como uma baba demencial.

Entre Silvestre e Luísa, sozinhos, numa casa que mais se assemelhava a uma capela mortuária, instalou-se um surdo desencanto que uma inútil troca de acusações fez crescer. Esmiuçavam facilitismos e encobrimentos antigos num passar de culpas mútuas; travavam discussões de uma inaudita violência verbal, sem um arrependimento, como se fossem escapes para os fumos das suas amarguras; às vezes, tentavam salvar a relação que nascera com tanto ardor e felicidade, mas esse esforço era, em si mesmo, já um sinal de termo.

Suportavam-se, cada um à espera que o outro desistisse porta fora, a paixão e o amor eterno estilhaçados nos muros dos seus mutismos. Não se desejavam e as noites eram uma frivolidade penosa. Silvestre nunca pensara que a desgraça de um filho afastasse quem o gerara, fosse possível o desfazer de tantas ilusões, e nenhum futuro – nem mesmo o mais natural e lógico – estivesse certo nos projectos de vida.

Trabalhavam porque o Júlio existia e existiam pela esperança da sua cura.

O telefone da sua secretária tocava tantas vezes ao dia que o seu atendimento se tornara maquinal. Quando reconheceu, do outro lado da linha, a voz do Médico que orientava o Centro onde o filho desintoxicava, estremeceu, pensando que a libertação chegara. Mas não, aumentara o cativeiro: o Júlio fugira, já o haviam procurado, mas, sem êxito. Levantou-se como um furacão, o João gritou-lhe «Olha a carteira!», voltou
atrás, e desapareceu diante da compaixão dos colegas.

Iria ao sítio onde o filho estoirara as mesadas e os acrescentos familiares. Antes, porém, pegaria na arma para solucionar, de vez, a sua alienação. Num dos cruzamentos da longa avenida onde morava, na bicha que aguardava o fim de um semáforo vermelho, viu o Júlio, desfigurado, dobrado, sonâmbulo, mal vestido, um farrapo, a estender a mão às esmolas dos carros. Enlouquecido, vergastado pelo lume da vergonha, esmigalhado nas derradeiras nervuras da sua resistência, arrancou louco, deixando atrás de si um coro de buzinadelas, não viu as cores nem as passadeiras, meteu o carro na garagem, não correspondeu à saudação do vizinho do quarto esquerdo e mandou o elevador para o sétimo frente. Sentou-se no velho sofá que a Mãe lhe oferecera quando fizera trinta anos, onde costumava ler e escrever para o boletim da comissão fabriqueira da sua paróquia aldeã. Não ouvia o eco dos carros, os apitos agressivos, a chiadeira das travagens, o grito lancinante de uma ambulância a querer romper a confusão, a algazarra das crianças no infantário das traseiras do prédio. Não tinha uma lágrima, nem uma lembrança, nem uma vontade, não tinha nada, nem se tinha a si, nem sequer a certeza de que o destino pode ser adiado. Silvestre esqueceu a parabellum, pegou num papel e escreveu: «Não merecia isto. Vou desertar.» Colocou-o na credência do hall de entrada, abriu a janela e deixou-se cair como um pássaro chumbado.


- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustratrativa acima foi recolhida da internet livre e editada. Clique na imagem com o "rato/mouse" para ampliar.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal. Faleceu em 27 de Junho de 2012.
Clique  na imagem acima para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "ForEver PEMBA" em Julho de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Atualização em Maio de 2013 Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

10/23/12

UM HOMEM

Aqueles doze dias que me deram, antes do embarque, pareceram a satisfação da última vontade de um condenado. Para dizer a verdade, só o sono me descansou. De dia contava o tempo, olhava o fundo do vale, com o Douro ao fundo, e nunca a estrada me foi tão curta e tão detestada; chegava a pedir o impossível: que ela desaparecesse do mapa. Era uma dor que nunca soube definir: a barriga em espasmos, uma vertigem no olhar, mas o que me custava mais era uma ardência no lado esquerdo do peito; acho, até, que era a angústia transformada em revolta, que, como sabemos, não mata mas dói. Cheguei a pedir que os dias saltassem para me ir embora depressa, acabava-se com aquilo, abandonada, há muito, a ideia de me escapar com o Artur para Paris. Ficava meio mundo a falar que eu me “cortara”, e sei lá se o Salazar não era eterno e nunca mais eu cá voltaria. Minha mãe, sabe Deus como, lá ia aguentando, e havia ali, entre nós, um penoso jogo de disfarçar sentimentos, que chegava a ser desumano.

Mas, quando chegou a hora de me despedir, o mundo desmoronou-se. Julguei mesmo que se encerraria o sofrimento: ficaríamos esticados pelo fatalismo da síncope e o Niassa rumaria a Angola com menos um camuflado. Penso ter escutado o comboio – é melhor usarmos a ironia porque, às vezes, nestas coisas de contos, não se sabe como encurtar a volta a situações intoleráveis –, e lá me despeguei para o carro de praça, que me esperava. Não ouvi mais nada, ou não quiz ouvir. Quando ia na recta, antes da curva que tapava a vista da casa onde nasci, olhei para trás, dei um grito e chamei nomes do piorio aos donos da Nação; o chaufer riu-se, disse-me que , com ele, quando foi para a Guiné, tiveram que o ir buscar ao café, e rematou: « Sr. Gilberto, deixe lá; o senhor vai como oficial, eu fui como soldado. » De repente, não entendi onde estava a vantagem, mas conversar era o que menos me apetecia.

Eu estava habituado a viajar, de comboio, da Régua para o Porto, e vice-versa, mas daquela vez o pouca-terra parecia nunca mais chegar. Pedi a todos os santos para que o Gualter estivesse à minha espera no Embaixador, e abri a mala para tirar um livro dos que levava, juntamente com alguma roupa. Calhou-me o Fio da Navalha. A primeira coisa que li foi a citação introdutória: «DIFÍCIL É ANDAR SOBRE O AGUÇADO FIO DE UMA NAVALHA; É ÁRDUO, DIZEM OS SÁBIOS, É O CAMINHO DA SALVAÇÃO.» Havia de saber quem era o Katha – Upanishad, mas só quando, e se, acabasse a comissão. Foi mais o tempo em que espraiei os olhos pela paisagem do que pelo romance de Maugham, o que me agravou o estado de alma. Imaginei minha mãe, vestida de luto, deitada sobre a cama, com a Laurinda a confortá-la; a minha aldeia, de caminhos e casas sem água e sem luz, com a fome à espreita nos cardenhos dos cavadores, as crianças sem culpa da injustiça dos adultos. Deixaria o meu país sem uma pinga de progresso, triste e desolado, cheio de bufos.- até , se calhar, o velho que se sentava ao meu lado -, uma terra sem uma disparidade na côr, tudo cinzento, até as palavras eram sempre as mesmas, o único contrário era a morte. Lembro-me que enxuguei os olhos, na paragem em Penafiel, quando vi, à janela, uma velhinha, de lenço preto na cabeça, subir com dificuldade para uma carruagem das traseiras. Ali ia eu, adolescente feito à pressa atirador de infantaria, para uma guerra que a teimosia de um ditador velho e de falsete, sem filhos e sem carinhos, transformara em destino patriótico. Os campos, ao longe, cumpriam, na nostalgia do abandono, o calendário primaveril: os rebentos pascais, com as maias em saliência.

Mal o comboio parou em S. Bento, corri como um desalmado, de mala na mão, fazendo uso dos quinze meses de tropa, receoso que o meu amigo já tivesse ido com o pai para Lisboa. Pedi ao engraxador que guardasse a mala, com a promessa de que depois me limparia os sapatos, subi as escadas para o primeiro andar, onde alguma  gente já comia, e só nos bilhares é que o encontrei, encostado a uma janela a ver uma partida de snooker. Fazíamos a festa do costume, quando ele me atirou: «Consegui uma baixa no Hospital Militar. Vou para lá amanhã.» Levei um murro na boca do estômago; aquilo soube-me a traição. Toda a gente se tentava safar, inventando pés chatos ou úlceras repentinas, até água gelada deitavam nos ouvidos para criar ou agravar uma otite, mas isso era mais naqueles que pagavam bons cabritos; ignorava que ele fizesse parte desse esquema, e, para disfarçar, pedi-lhe que me arranjasse uma baixa também. Fomos comer umas tripas à Flor do Congregados, contou-me como o pai se mexera e das esperanças que tinha de ir para os Serviços Auxiliares. Ficou de me escrever ou telefonar para contar como lhe correra a patranha.

No Foguete, a pensar no golpe do Gualter, dei por mim a inebriar-me com o meu heroísmo e, para ser franco,perpassou por mim uma excitação de bandeira ao vento. Por meados de Aveiro, adormeci, ajudado pelo feijão e pelo fino. Em Santa Apolónia, consultadas as horas, hesitei entre ir para o Cais do Sodré ou para a Amadora. A mala das primeiras necessidades determinou a minha recolha decente, matando o tempo na conversa de sala numa messe quase vazia , com a televisão a repetir o Aqui há fantasmas e a emissora nacional a transmitir um Serão para trabalhadores.

Passadas que foram três semanas, já só de ordem unida para reforçar o espírito de corpo, o batalhão estava na Rocha do Conde de Óbidos, disperso com os familiares, numa algazarra ensurdecedora, enquanto não recebia ordem para formar. Eu fazia parte dos que não tinha compromissos desses, assim o pedira. Sem dormir e cheio de café queria que o embarque acelerasse para aproveitar o balanço do Niassa; resolveria dois problemas: não assistiria à despedida dos lenços, e dos gritos, e dos gemidos, e dos desmaios e o sono ficaria em dia ou em noite. Estava a conversar, já não me recordo com quem, quando me baterem nas costas. Virei-me, repentinamente, não fosse o capitão da minha companhia, quando caí nos braços do Gualter. Reparei que, ou estava com uma bebedeira ou louco, as lágrimas cobriam-lhe as faces, «Gilberto, parto daqui a oito dias para a Guiné. Aqueles filhos ...», balbuciou, sempre agarrado a mim. Percebi, então, que a armadura por mim inventada para aquela ocasião estava a derreter-se, provocando-me queimaduras de muitos graus. Toques de clarim e vozes de comando repercutiram no bruá reinante que, a pouco, se esbatia. Sem saber como proceder, apertei-o mais, apressadamente, os diques rebentaram-me, e senti-me verdadeiramente UM HOMEM.
- M. Nogueira Borges*, Porto 23/7/10, para ForEver PEMBA/Escritos do Douro 2010. Atualizado em Outubro de 2012.
  • M. Nogueira Borges no "Escritos do Douro" e no "ForEver PEMBA"
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

9/23/12

OS IGNORADOS

Falo-vos da África dos matos sem fim,
Dos ecos perdidos no capim,
Das picadas vermelhas mas livres,
Tão livres como a liberdade.
Em cada curva uma palmeira,
Em cada lugar uma saudade,
Em cada sorriso uma clareira
De brancura e de amizade.

Falo-vos das noites de encantamento,
Das queimadas para lá do pensamento,
Da lua a beijar a baía de Pemba,
Do batuque e das esteiras na temba
Onde o meu corpo se satisfazia
Em outro corpo que, depois, dizia:
« São cinco quinhentas, patrão! »
E eu, cá dentro, aqui onde bate o coração,
Nem sei o que sentia.
Só sei que, depois, voltava
Com mais quinhentas na mão,
Roído pelo tédio e a solidão.

Falo-vos dos poemas proibidos,
Alguns esquecidos,
Outros lembrados
E agora publicados.

Falo-vos dos loucos a berrarem no entardecer,
Das sentinelas a dispararem para a escuridão
Com o medo aos saltos, na indecisão
Da manhã que não se sabe se vai nascer.

Falo-vos dos rios em que lavei o rosto,
Matei a sede ao sol- posto,
Gritei que não queria a guerra,
Mas não desertaria da minha terra.

Falo-vos da África onde não voltarei
Para matar a fome das minhas recordações,
Abraçar os irmãos que deixei
E lamber as feridas de todas as desilusões.

Falo-vos da África dos nossos soldados,
Dos seus sorrisos e dos seus abraços,
Uns, já mortos, outros, vivos-despedaçados,
Mas, todos eles, ignorados.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima representa parte do Parque Tsavo no Quénia/África e foi recolhida no site "Viajologia-Época-Viajando com Haroldo Castro". Composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

6/02/11

TEMPO MOÇO

Deitados na caruma, de olhos fechados, sentíamos os voos das pegas–azuis, os estalos dos pinheiros e, ao longe, na ondulação dos montes, os zumbidos dos pulverizadores.

Não sei quantos anos tínhamos, talvez dezasseis, talvez dezoito ou talvez aquela idade em que não se sabe, ainda, contar os anos.

Da pequena cachoeira, a deslado de um renque de salgueiros (pareciam salgueiros...), vinham os ralhos das mulheres que lavavam a roupa, misturados com a gritaria da canalha entre barrigadas na água e correrias pelas margens.

Flutuavam aromas de Verão, o cheiro a terra e a flores silvestres entranhava-se nos corpos. Ficávamos, assim, colados ao restolho, cansados da subida, à espera que o comboio nos acordasse.

Quando o pouca-terra-pouca-terra da via reduzida atravessava a ponte, sentávamos-nos a ver aquilo: carruagens esverdeadas, andar bocejante, fumaradas de cigarro, brinquedo de cascata sanjoanina. Os nossos cabelos eram fios de sol e trocávamos olhares tão ternos como a lua contempla o mundo nas noites quentes de Agosto.

Corríamos os bardos à cata de ninhos de melros, e havia sempre, ao entardecer, um rouxinol que cantava para os lados da ramada que sombreava o poço.

Tudo era verdadeiro, a amizade existia mesmo e ninguém invejava ninguém.

Tínhamos a novidade do princípio que nunca se inicia nem acaba qual a sede num sonho.

Trepávamos ao pinoco de cimento, que comemorava o ponto mais elevado do monte, e dali abarcávamos uma vista delirante: medonhas penedias forradas por simétricas fieiras de verde tão a pique que parecia impossível um homem conseguir lá botar sulfato; estavam mesmo junto às nuvens, numa adoração telúrica que nem sabíamos se era herética ou sagrada, enquanto o comboiozinho, ao longe, pronunciava uma curva larga, em câmara lenta, pedindo que algum santo o empurrasse.

Ignorávamos o ódio que é feito daquele martírio de linguagem escolhida para a ofensa gratuita, expressa por olhos esbugalhados para perturbar a boa fé. As mãos das pessoas tinham calos e terra nas unhas, as barbas faziam-se aos domingos de manhã e o Padre madrugava com o sino da Capela a interromper os sonos.

Ecoavam os cânticos das aleluias, o toque dos santos, a adoração da hóstia e, depois, os homens iam, abençoados, de sacho ao ombro, desviar as águas para as hortas.

Líamos, às escondidas, o Crime do Padre Amaro ou Andam Faunos Pelos Bosques, enquanto as moçoilas, de caneco à cabeça assente em rodilhas, mostravam os vestidos de chitas floridas; as Mães, cansadas, catavam ganapos; os homens, nas tabernas, jogavam o monte ou o sete e meio, mastigando tabaco de onça e escarrando no chão térreo; os leilões de cravos, cestas de fruta e galos de crista vermelha fomentavam vaidades aldeãs em nome das festas de Santa Bárbara; os bailaricos de poeira, suor e olhares de soslaio alimentavam rivalidades ciumeiras.

Naquele tempo desconhecia-se a morte. Ela estava cercada por quatro paredes, no canto mais afastado da terra, e não gostávamos daqueles toques metalóides dos sinos da Igreja quando uma multidão vestida de negro se arrastava, estrada fora, como uma cobra do rio.

A morte era um eco difuso, pouco audível, que a noite, por vezes, avivava em receios de fantasmas. Depois, adormecia com a sensação de que me faltava alguém.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustrativa acima foi recolhida da internet livre e editada. Clique na imagem com o "rato/mouse" para ampliar.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal.

5/19/11

PRETÉRITO IMPERFEITO

Íamos, meios tontos, inebriados pela fantasia de que era tudo nosso, correndo pelos caminhos de sombras da mata, arrancando, aqui e além, ramitos de mimosas, até nos quedarmos, ofegantes, no encosto de um tronco, o suor a escorrer pelos corpos.

Não sabíamos que o Mundo tinha hospitais e cadeias, lágrimas nos cantos da tragédia e ódios recalcados na desventura de vidas desconhecedoras do perdão.

Ignorávamos que o amor é, tantas vezes, uma hipocrisia sustentada pela comodidade de não romper interesses ou ferir o futuro dos nascidos sem culpa.

Julgávamos eternas as juras de fidelidade e que os dedos entrelaçados nunca se desatariam.

Não conhecíamos a ingenuidade porque, entre nós, tudo era seguro e limpo.

Troçávamos dos conselhos dos mais velhos como se fossem frustrações de quem não encontrara a felicidade. Esta nascia-nos nos brilhos dos olhos e na sofreguidão dos afagos. O dinheiro não contava porque matávamos a sede na água do riacho e a fome nos frutos que amadureciam sob o calor das férias.

Da cidade chegava-nos a confusão, amortecida pela muralha do arvoredo, e os passarinhos cantavam connosco. Era lindo ser-se novo! Sentir na cara a seda da brisa e nas veias o sangue do desejo, libertos dos ralhos e das sinetas, sem vultos negros nos corredores semi-iluminados, sem o cheiro lixiviado das camaratas e as imposições dos recolheres vespertinos.

Não voávamos que não tínhamos asas, mas os risos e os sussurros acompanhavam-nos na leveza de quem não fazia contas. O futuro não existia, ou antes, era o momento, tinha a dimensão de uma ternura e a certeza de que a luz da tarde nos daria o tempo suficiente para nos vingarmos da noite.

Sentávamo-nos num banco de pedra a contemplar a colina do castelo, enlevados em romances de cavalaria e princesas encantadas. Do lado de lá, depois de um abismo rochoso, ficavam os lameiros onde se abatiam as codornizes enquanto não chegava o tempo das perdizes e dos coelhos. Eram terrenos férteis, de vales amplos, acordados pelos tiros e pelos gritos das manhãs cinegéticas.

Não sentíamos as lágrimas da humilhação, a indiferença das almas egoístas, as cobiças insensíveis, a inveja deprimente.

Éramos vazios do mal, só a boa-fé nos comandava. Traçávamos as linhas da honra sem imaginarmos que, um dia, mais repentinamente do que começáramos, as estradas dos nossos passos nos levariam cada um para seu lado com o mar a separar continentes e a guerra a enlouquecer uma geração.

Mas valeu a pena acreditarmos, percorrermos a ilusão. Se conhecêssemos tudo o que a vida nos trouxe, desistiríamos, logo ali, de sermos felizes. A felicidade, por pouco tempo que seja, vale sempre, ao menos, uma memória.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustratrativa acima foi recolhida da internet livre. Clique na imagem com o "rato/mouse" para ampliar.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal.  

3/25/11

CARTA (IM)PROVÁVEL

Para uma MÃE... para uma Esposa, para um Irmão(a), para um Familiar... para um Amigo(a):

   Não sei o que queres de mim, diga ou faça. Olho-te para lá dos teus olhos, como se quisesse entrar na tua alma, lembro a tua cara de criança, quando te conheci, sorriso aberto e feliz, e é como se regressasse ao tempo da inocência, ao pensamento limpo, sem nódoas. Tanto quis que a nossa vida se desenrolasse em harmonia, com tudo lindo como o teu rosto! Agora, quando te fixo de lado, para, julgo eu, não te distrair, e te vejo de olhar vazio cravado não sei em quê; essas olheiras fundas que não te desaparecem nem que durmas um dia inteiro; essas rugas, antes da idade delas, que vão da testa à junção dos lábios, outrora vermelhos e sensuais, cujos beijos eram o onírico despertar do desejo; esses teus seios caídos e mirrados, antes redondos e firmes, onde aplaquei os arrebatamentos das noites de excessos; esse teu corpo vibrátil mas sempre pudico, abandonado ao cansaço da satisfação – quando recordo tudo isso não consigo encolher as lágrimas.

   Não sei o que queres de mim, diga ou faça. Ficas calada e quieta, como se eu não te pertencesse, como se tu não me pertencesses, mas eu pertenço-te, pertencemo-nos, não sou do teu sangue, mas sou de ti e teu porque fui de ti e teu na luxúria dos corpos, na franqueza da convivência, que é sempre o desnudar recíproco de tudo o que é, no mais íntimo, nosso. Sessenta e cinco anos dão para criar filhos e netos, para se ser feliz com eles novos e não adormecer a pensar neles, mais velhos, enquanto não chegam a casa. Em quarenta anos de comunhão já não há segredos nem originalidades, tudo se conhece de nós e muito dos outros, tudo foi dito. Monossílabas sons, alguns entendo-os porque uma vida inteira dá para perceber até o imperceptível; mas eu queria que te explicasses, porque era importante conhecer essa tua nova vida, o que se passa dentro de ti, o que sentes, se ainda tens consciência e desejo, se ainda eras capaz de recordar a brasa da nossa paixão, quando lá fora nada interessava, e só na nossa solidão preenchida, no nosso egoísmo compartilhado, nascia o amor, a insaciabilidade, o esquecimento.  Era indispensável que me demonstrasses o que aconteceu ao teu cérebro, à tua alma, aos teus nervos, à tua genica que, de tão grande, me confundia, por vezes, naquilo que eu julgava ser uma fuga de ti. Assim, queda e muda, de quando em quando um esgar, que acho de sofrimento ou de repulsa, sem uma reacção ao meu aperto de mãos, sem um esboço de vontade; assim ao teu lado, parece que não tenho ninguém, que vivo só na companhia de uma defunta por enterrar, um isolamento duplo, que já não sei se estou sozinho ou acompanhado.

   Quem diria, quando nos conhecemos, que uma coisa destas te (nos) iria acontecer! A medicina diz que não tem cura para ti. Vais, então até o coração (ou o cérebro) parar, levar esta vida vegetativa, sem te aperceberes de nada, de quando te dou os comprimidos, a sopa passada ou o leite por um biberão, como quando os filhos eram bebés, sem saberes quem é a enfermeira que me vem ajudar e ensinar a lavar-te, a mudar a algália? Será que não quero que morras? Tenho medo que apodreças, cries pústulas, e o teu espírito fuja pela janela de Agosto? Umas vezes, quando, cavalo enfreado, o desespero me toma, tenho ganas de te deixar, nunca mais ver essa tua cara de esquife, de fatalidade, esse rosto que foi tão belo e, agora, um desenho de mímica. Mas não fujo, lembro-me que podia ser eu no teu lugar, e tu, tenho a certeza, nunca me abandonarias. Para lá de tudo, o nosso amor não merece nenhum abandono, nasceu da atracção fulminante do nosso olhar, consubstanciou-se na posse da carne e na mistura do sangue; é tão forte que, mesmo quando não existirmos, havemos – almas invisíveis – de voar sobre a terra, e os que ficarem saberão que nenhuma memória se sepulta. De noite, quando me deito, apetece-me acordar-te; acaricio as tuas coxas, a tua púbis, subo ao teu ventre, aos teus seios, e é como se um cadáver estivesse a meu lado, só a quentura me diz que ainda existes; arrepio-me de ainda te cobiçar, querer possuir-te até ao fundo de mim, de nós, igual àquelas horas em que, loucamente, nos esmagávamos na sofreguidão. Não te troco nem me lembra de o pensar, falta-me a coragem de te substituir. Para onde foi aquela voracidade de viver que me ajudava a disfarçar os instantes de incerteza? Ver-te de olhos brancos, da côr da tua pele, sem um clarão, um lampejo, breve que seja, um sinal de presença partilhada, é um castigo sem culpa que me estremece de revolta. 

   Lembro-me de quando dávamos banho aos filhos ou íamos a correr com eles para o médico, mal qualquer tosse ou febre nos inquietava o sono ou o instinto. E recordo, muitas vezes, nestas alturas, não sei por que absurda  associação de ideias, quando te vi pela primeira vez! Tinhas umas covinhas na cara, uns olhos de Primavera e um riso de Estio. Escrevia-te cartas incendiadas, chamava-te amorzinho e boneca das minhas brincadeiras. Como passa e se transforma a vida! A porteira do colégio, medrosa, entreabria a porta com um sorriso de adorável cumplicidade, pegava no envelope e dizia-me que era a última vez. Mulher corajosa e amorável, que arriscava, aos olhos tentaculares das freiras, o seu emprego, como se aquele amor clandestino também fosse dela ou imaginasse um semelhante. Nas tardes de domingo seguia-te os passos aonde te levavam as vestes negras. Rias-te às escondidas, tapando a boca com as mãos, a Manuela a dar-te cotoveladas, eu a mandar-te recados pelos olhos, e tu encolhias os ombros, desenhavas um coração com os dedos e « Amo-te » com os lábios. Meu Deus!, como se trituram sonhos, se desfazem previsões! Olho as paredes, e apetece-me deitar fora as fotografias em que estamos, esmagá-las sob os meus pés, queimá-las na lareira, arrasar as nossas lembranças, para que nada reste do antigo e que me ofende quando o comparo à idade de hoje. Nem quando te vêm visitar e me misturo, nesse intervalo, no movimento das ruas para não me desabituar do Mundo, te esqueço. És um castigo que não merecia, ainda menos tu, mas és esse castigo que me interroga a ideia de Deus, embora não consiga apagá-la numa certeza, ao ponto de não suportar os sinos das missas domingueiras e ter vontade de mudar de casa para o meio de um monte só com pedras para esmurrar, e ouvir, ao longe, num eco sem fim,  os berros que engulo neste sexto andar. E aí chorar bem alto as lágrimas de raiva, de desgosto, de porquê a mim?, de injustiça sentida como uma ingratidão sem nome. Será possível, meu amor, que te tenha acontecido uma coisa destas, a ti, que foste o sol da minha vida, o corpo do meu ( do nosso ) prazer, a razão de todas as manhãs te deixar com vontade de regressar depressa, de te telefonar duas e mais vezes ao dia com o chefe a perguntar-me se tinha alguma amante, o pessoal a rir-se quando eu dizia que era a minha mulher.

   Como aconteceu isto? Ignorámos, durante anos, que a morte tem o privilégio da impunidade e a vida se sujeita a todas as arbitrariedades julgadoras; que a desfilada dos anos aniquila a espontaneidade  e cimenta a rotina dos silêncios onde mergulham as saudades do que nunca fomos. Não tínhamos à volta, nem em nós, a gelatina da mistificação, conhecíamos as agruras alheias, mas não as víamos na vizinhança dos nossos passos.  Afinal, chegaram, quando nunca as esperávamos.  Já não as conheces; eu, como escolhido, vou ter  que  aprender a fingir que as divido contigo. Quero-te útil até acabares. Vamos, então meu amor, ser vizinhos até ao fim.
- M. Nogueira Borges*, Portugal, 26/2/2010.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em Adobe Photoshop e PhotoScape e poderá ser ampliada clicando nela com o mouse/rato.

3/21/11

O SILVA

Conhecera-o em Mafra, no C.0.M., onde, durante meio ano, nos sacrificámos para termos alguma hipótese de escolher a futura colocação num quartel próximo de casa. Fazíamos o que nos mandavam, mesmo que isso nos violentasse, prolongávamos o esforço para lá dos limites, decorávamos os regulamentos como quem engole a repugnância, manuseávamos as armas com a presteza dos autómatos e desmanchávamos as culatras com a troça de um desfastio.

Encontrámo-nos em Chaves para formar Batalhão, embarcámos no mesmo barco para Moçambique e separámo-nos em Nacala. Durante meses trocámos SPM, mas, repentinamente, os seus aerogramas cessaram.

Um dia, num desses dias em que o calor húmido cola as roupas à pele, encontrámo-nos numa cidade construída no meio dos pântanos. O abraço teve a alegria de uma criança quando lhe reaparece o brinquedo preferido. No café, repleto de ventoinhas de tecto, de fumos de cigarros e conversas agitadas com pressa de recuperar os afectos interrompidos, estendemos o reencontro. Continuávamos, afinal, os mesmos: sedentos de regresso e de paz, contrariados na guerra e desaproveitados na vida, sem vontade de matar mas obrigados a fazê-lo para não morrer, a rotina do estupor a tapar-nos os horizontes; vivíamos de recordações, os passeios a Lisboa e à Ericeira para vermos as coxas das miúdas a atirarem-se aos cadetes de Mafra; os bonecos do Franco no Sobreiro, os escuros corredores da EPI ensombrados pelos fantasmas das batalhas de Naulila ou La Lys; os bifes do Novo Rioma, as melodias sineiras dos carrilhões, aos domingos, a encimarem a monumentalidade barroca de D. João V; os devaneios bucólicos à foz do Lizandro, as marchas na Tapada com os gamos e os veados a mirarem-nos surpresos; as saudades de Coimbra como feridas incicatrizáveis, a quietude das nossas aldeias separadas pelo eco de um berro, as bocas das namoradas sem uso; o velho do Salazar que nunca mais morre, o tempo que demora a passar, o cansaço da escrita que só apetece para a família chegada e, quantas vezes, sem saber o que se dizer.

- Por que deixaste de escrever?

- É sempre a mesma merda, depois das patrulhas só me apetece dormir. Aliás, sabia que, mais dia menos dia, me dariam um mês de descanso e que o faria aqui, sem dinheiro para ir à Metrópole. – Fez uma pausa para um gole de Laurentina. - Sabes quem morreu? O Daniel.

- Não era aquele gajo que dizia que queria meter o chico?

- Tinha essa mania, pintava-se de preto e ia sempre com granadas à cintura; rebentou-lhe uma defensiva e fodeu-se. Matou-se sem glória. Ainda está em Miteda, lá num canto, cheio de chumbo por dentro e por fora, à espera de um barco.

Um tipo esquisito, o Daniel: sorumbático, ombros fortes a rasgarem o blusão, o rosto de feições montesinas, uma reserva forçada como se a vida nunca lhe permitisse uma subtileza. Deliciava-se com a aplicação militar e constava que limpava todos os dias a bicha de Aspirante. No bar, nunca passava de meio chá com duas bolachas e, enquanto os outros folgazavam, ele ficava horas sentado a ver a televisão espanhola.

- Mas, sabes – retornou o Silva quando já passeávamos na marginal - , o tipo tinha melhorado, estava mais dócil e já se ria para os soldados. Não havia operação que não quisesse ir, confiante, «vou ali e venho já», dizia ele. O Capitão ia propô-lo para um louvor ao nível de Governador Geral. Agora, então, é que vai ser uma maravilha com o gajo já morto. E a malta do pelotão já gostava dele, sabes? Dormíamos no mesmo cubículo, jogávamos a sueca, mas nunca nos afeiçoámos. Quando vi a padiola e o tipo estendido é que senti uma coisa cá dentro que ainda hoje não consigo precisar. Pareceu-me um desperdício, um roubo, a cópia dum hipotético futuro meu, notei-lhe a ausência, que ele tinha existido comigo, que estávamos, afinal, no mesmo lugar. Tive medo e, não sei se por isso ou por ele, chorei que nem um desalmado, como se as lágrimas me desculpassem de estar vivo, entendes o que quero dizer? Uma justificação que se dá mesmo sem se ser obrigado. Esta merda é fodida. Andamos aqui todos a ver se safamos o canastro e quando morre alguém parece que temos culpa por não sermos nós.

Era ao fim da tarde quando África é uma perturbação enlanguescida. O sol, bolha de sangue estampada no horizonte, morria, lentamente, num desmaio de donzela consolada pelas carícias do mar. A noite caía cedo – como caem todas as noites africanas -, uma brisa de sirgo sensualizava os corpos e espevitava frémitos. As mulheres, de vestidos leves ou calções generosos, espalhavam perfumes e ousadias. Os homens, de balalaicas impecáveis, fumavam LM e miravam as capulanas das negras roliças. As peles tinham a cor da nascença ou da frequência da piscina. Caminhava-se num chão de vidro, os sorrisos atirados para os lados. A guerra estava longe, mesmo que fosse ali ao lado, para lá da picada vermelha, da escuridão da selva, da desconfiança das tembas. Nas esplanadas, o gelo desfazia-se no uísque ou nas coca-colas; a cerveja gelada acompanhava-se com pratinhos de camarões, ameijoas ou pedacinhos de dobrada; as faces enrubesciam, as barrigas, bem instaladas, avolumavam-se - respirava-se um ar de insolvente abundância.

- Não te choca este ambiente? Até esta paneleirice inglesa de os carros andarem pela esquerda com os volantes do lado direito me mete confusão! – exclamou o Silva. - Anda um tipo, no mato, de canhangulo em punho – prosseguiu nervoso -, sujeito a levar um tiro nos cornos, a lutar pela Pátria como dizem os cabrões, chega-se aqui e parece que nada se passa.

- Fazem um esforço para esquecer que a guerra existe. – fingi sentenciar. Eles até dizem que a guerra só os empobrece, como se acreditassem que acreditamos. Há aí tipos a fazerem fortunas. Sentem-se desobrigados e alguns dizem que resolviam isto sozinhos, falavam com a Frelimo e dividiam ao meio o poder. Nós andamos cá a complicar, a esvaziar o Tesouro para nada. Toleram-nos, acarinham-nos, convidam-nos para almoçar e esforçam-se por nos tornar importantes.

O Silva trazia o cansaço do mato que, quando longe dele, procura, mais que o ócio, o farejo da fêmea. Reparava nas raparigas com um olhar que tanto parecia uma imploração condoída como um prenúncio de vulcão prestes a explodir. Tinha o rosto seco pelas vigílias cacimbadas e pelo desejo reprimido. Só a inibição social o detinha. Mas não pretendia o sexo fácil, comprado por meia dúzia de quinhentas, sim a naturalidade de um ímpeto civilizado, a satisfação racional que lhe matasse a fome de homem e não de macho. Na Metrópole, ficara a Joana, cabelos compridos e lábios de polpa, sentada nos bancos de Direito, a ouvir aquelas secas das Obrigações, a escrever-lhe noite sim noite não, ele duvidando, às vezes, se a encontraria, que o amor é muito bonito quando a presença não se imagina mas sente. Já sabia que o verdadeiro amor é o do sangue, o único que é cego a sacrifícios e não discute contas. Jurara fidelidade, aquela promessa fogosa que a despedida longa solicita, mas omite o imprevisto.

- Já reparaste – atirou o Silva – que aqui as raparigas parece que crescem mais depressa do que lá no puto? - Veem-se aí catraias, acabadas de nascer, quinze, dezasseis anos, corpos de mulheres feitas, desinibidas e a pedir tudo! – insuflou, enquanto um sorriso concupiscente lhe envolvia os olhos.

- Acautela-te e não te deixes levar por aparências. O sonho de muita miúda que te mira é apanhar um alfereszito e amarrá-lo a um embondeiro. Então as mulatas adoram galões e camuflados. Não te esqueças que tropa é sinal de submissão – chacoteei.

- Quer-se dizer que o mais seguro é na temba...– acentuou Silva em tom desconsolado.

- Olha para aquilo! – anotei. - Andam cem cães atrás e os pais nunca a largam. O tipo é um coca-cola ligado ao cajú e ela é uma broeira que só tem corpo e passeia os livros na Escola Técnica. É só encenação, espremida não dá nada, quando abre a boca é de fugir.

- Não me importava nada de experimentar. Quem fugia, se calhar, era ela com o susto! – motejou Silva.

Dir-se-ia que toda a gente afluíra à beira-rio, baptizado por Vasco da Gama, há séculos, de Bons Sinais, já sem os vestígios da fortaleza que a história de mil e quinhentos diz ter existido em comércio esclavagista. De cá para lá, desde a ponta em que se erguia o palácio do Governador até à outra da zona da piscina, os corpos deslizavam na mornidão amansada por um cacimbo prematuro. Chamavam-lhe o picadeiro, montra das vaidades e da alcoviteirice.

Era uma cidadezinha de moradias predominantemente familiares, estilo colonial, com um jardinzinho sempre bem tratado pelos mainatos. Por si própria se fez, sem o ouro metropolitano, saneados os pântanos que não dispensavam, tantos anos depois, a pulverização diária, impregnando, pelo cair da tarde, o ar dum cheiro repelente de fenotrina. Na generalidade, os seus habitantes tinham a franqueza nascida em terras transmontanas ou beirãs, e ofereciam, nas suas salas climatizadas, copos de uísque cheios de gelo com «chim! Chim!» de sorrisos. Os arruamentos, rectilíneos, cruzavam-se como se medidos em estirador de arquitecto, os poucos prédios em altura eram uma apressada resposta à multiplicação demográfica que a guerra gerara. Visitavam-na não só a flutuação militar ou os endinheirados do Malawi que atravessavam a fronteira de Milange como se fosse a Valença Moçambicana, mas, também, os senhores do cajú, do chá e do óleo de copra, abundantes nas plantações conquistadas ao mato. Na época das chuvas, com as picadas intransitáveis, impróprias para Nissans e Land-Rovers, quanto mais utilitários, a cidade recuperava a identidade. O aeroporto, longa fita de terra batida, metade asfaltada, que permitia a escala dos friendships da DETA ou os ronceiros Dakotas com a Cruz de Cristo pintada, dava-lhe um ar civilizado.

No mato circundante ficava a temba, caniço habitado pelo diminuto proletariado negro, macuas meios indeiscentes e mulatos de desconhecidas paternidades, que, no fim do trabalho, iludiam o descanso na aguardente de cana e batucavam espíritos entre o capim. As tarimbas, noite dentro, não tinham sossego, as mulheres entregando-se, contando moedas, à febre duma juventude que despia e vestia fardas como se despachasse um desassossego. Na cantina do branco, comiam-se pernas de caranguejo e bebiam-se bazukas à sobreposse, enquanto, no alpendre, corpos suados e ébrios, se agitavam diante do gira-discos das marrabentas. Era um lupanar ao relento com o cacimbo já colado aos corpos e às coisas, o suspiro da selva insinuando-se nas palhotas que escancaravam intimidades; um alcouce de misérias, ónus acusatório de um comportamento tiranizado, a ostentar as fraquezas como macropias de heroísmo.

O Silva, atarantado pela liberdade, longe dos buracos, das rações de combate e dos tiros, pedia sempre, pelo meio da manhã, um jeep que o levava à praia e o ia buscar ao anoitecer para encher a barriga de camarão, bife de impala e cerveja que o inebriava pelo silêncio da madrugada. Cantava, então, fados de Coimbra que o Capitão do Quadro, de mentalidade miliciana, aplaudia com tosse exagerada e um (des)concerto dos presentes. Numa dessas noites, de copos avançados, Silva atravessou-se:

- E agora – disse ele –, vamos encenar uma Serenata Monumental! O Largo da Sé Velha é um mar negro de capas, calmo e trágico. Calmo, porque precede a revolta; trágico, porque não a pode concretizar. Mas, malta! - exaltando-se - a hora está a chegar! A submissão não é eterna! Tudo acaba, até a infelicidade! Virá o dia em que brancos e pretos, as raças todas se abraçarão, e o Mundo há-de ser uma bebedeira de amor!

- Alferes Silva...– cortou, tolerante, o Capitão Velasco. – Está na hora de irmos dormir...

- Meu Capitão, o sono é a morte dos que não querem gritar a vida! Peço a todos – abarcando, com um movimento circular, os que assistiam, de desfrutados sorrisos, ao serão imprevisto - que levantem os braços, assim como eu estou a fazer, agitem as mãos como se tivessem capas, e berrem um grande eferreá pela esperança!

Uns melhor, outros pior, imitaram-no.

Depois, foi vê-lo e ouvi-lo, de olhos marejados, entoar a Samaritana, o corpo estremecendo num desespero angustiado.

A noite suspendeu-se de espanto. No lodo do rio, os crocodilos despertaram; no capim, cerce aos muros do quartel, ouviram-se restolhadas de bichos; as palmeiras da marginal agitaram-se em sussurros de brisas; a lua, virgem donzela, corou de lascívia; a escuridão desvendou ouvintes com dentes de neve; as lágrimas saltaram de emoção; os corações estoiraram contra os arames farpados; as picadas, para lá do asfalto, foram percorridas por asas de liberdade; nos terreiros do mato os tambores e as marimbas pararam de tocar; os babuínos, nos galhos das baobás, deixaram de latir; as jacarandás lilases ficaram rubras como as vagens das acácias; os duendes do melungo puseram-se, estupefactos, à escuta; os grilos encolheram as capas amarelas; as cigarras pararam o estrídulo e, na caserna, uma gelada desilusão adormeceu.
Silva antecipou, em dois dias, o regresso ao Planalto, aproveitando a boleia de um Alouette para Mueda, onde apanharia uma qualquer coluna para Miteda.

- Silvestre! – berrou-me. - Dá cá um abraço e continua-me com essa missão humanitária de consolar o mulherio solitário...

- Olha que a solidão é nossa, Silva...

Foi a penúltima vez que o vi, acenando-me, enquanto o helicóptero, como brinquedo de Feira Popular, se elevava. Passados poucos dias, pelos canais de informações militares, soube que o Silva ficara na Curva da Morte quando fazia o retorno a Miteda.

Revi-o, nos porões do Pátria, o nome escrito nas tábuas que encaixotavam o seu esquife. Ao lado ia o do Daniel.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em Adobe Photoshop e PhotoScape e poderá ser ampliada clicando nela com o mouse/rato.