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10/14/10

OS LADRÕES E O CHAMBOCO

Não me lembro ao certo como ali parei. Apenas sei que o ambiente do mercado Mbánguia estava em fervescência como sempre, com os vendedores e compradores a realizarem suas pretensões num ambiente cordial, ameno e respeitoso, tal como as regras costumeiras recomendam. Mas aposto que, naquela manhã de céu azul, eu e minha malta de infância haviamos desembocado naquele aglomerado populacional impelido por algo “nobre” e próprio da adolescência, como, por exemplo, o passeio livre e sem destino pré-definido, facto que acontecia com frequência naquele tempo. Eram passeios que não punham ninguém temeroso, pois, todo mundo se conhecia até pelo nome. Era o tempo de Pemba do antigamente, tão distante que até “despedaça” os coraçoes dos que viveram aquela época saudosa.

Contudo, já voltando ao cerne destas linhas, algo surpreendente naquela manhã e naquele local sucedeu. Certamente que alguém no meio da multidão sabia o que ia suceder, mas também é certo que muitos, como nós, nada sabiam até que, de um momento ao outro, as entradas exitentes nos quatro cantos do quintal do mercado, feitos de estacas e bambú, ficaram forçosamente fechadas e consequentemente a actividade comercial interrompeu-se por ordem de quatro milicianos fortemente armados, que gritavam incansavelmente:

- Silêncio, silêncio, silêncio…

De súbito, o frenesim do mercado interrompeu-se e os populares prestaram prontamente a atenção aos milícias. Junto destes, achava-se um homem vestido ao rigor da época: uma balaláica e calça castanha de caquí e sapatos pretos polidos ao ponto. No entanto, os murmúrios dos que se achavam no mercado foram baixando paulatinamente e o homem de balaláica, ostentantando uma estatura baixa, corpo magro, cabelo curto e barba feita cuidadosamente, dirigiu-se a multidão que lhe devorava com os olhos aguçados pela curiosidade:

- Viva o povo unido!
- Viva, viva, viva! – Era a palavra de ordem e o povo tinha-a na ponta da lingua.
- Abaixo os ladrões, inimigos do povo!
- Abaixo, abaixo, abaixo.

Rapidamente esta palavras suscitaram curiosidade desmedida entre os presentes, pois, o memento em que se vivia, qualquer discurso que iniciasse nestes moldes antevia alguma novidade de interesse popular. Mais, o país vivia a guerra de desestabilização e qualquer mensagem saída da boca de autoridade tinha seu crédito, uma vez que, quanto mais as pessoas ficassem informadas, mais possibilidades haviam de precaver-se. Assim viviam as pessoas nos primórdios da guerra!

- Obrigado. - Palmas fortes ecoaram no recinto comercial. – Hoje viemos apresentar-vos os que sabotam o nosso desenvolvimento, a nossa afirmação como nação independente e a nossa unidade.

Quem seria? Um bandido armado? Estes eram questionamentos óbvios que cada um ali presente fazia. No entanto, este enigma não tardou a desvendar-se, pois, enquanto o homem de balaláica discursava, foram trazidos ao centro da moldura humana quatro homens algemados e com feições intristecidas. Perfilados e cabisbaixos, os homens deteram-se ao lado esquerdo do homem de balaláica aguardando a apresentação pública e a execução do veredicto do tribunal popular. Nos seus olhos e nas suas expressões faciais era notória a vergonha e a humilhação. Todavia, nada tinham a fazer para contrariar o destino que, por ganância ou ironia do próprio destino, eles mesmo haviam traçado ou tecido, contrariando a ordem instalada e desafiando a força e euforia do povo, quem o poder lhe pertencia.

- Estes homens foram confiados para nos servir, mas por ganância preferiram servir interesses pessoais roubando o que é do povo.

O povo acompanhava atentamente o discurso excessivamamente politizado e pacientemente aguardava a súmula do mesmo. Fez-se um silêncio, mas logo a voz do homem voltou a ouvir-se.

- Vocês conhecem estes homens? – Apontou com dedo em ríste aos quatro homens cabisbaixos.
- Não! – Gritou o povo desordenadamente.
- São trabalhadores de três cooperativas de bens de consumo. – Fez uma pausa para raciocinar. – Há seis meses que vêm roubando produtos de primeira necessidade, como: arroz, óleo de cozinha, açucar, sabão, etc, e este acto fez com que centenas de famílias fosse prejudicadas em abastecimento, isto é, estas famílias receberam alimentos e outros produtos que não corresponde ao real número do agregado familiar e outras ficaram privadas deste direito, como consequência dos actos destes senhores. Como devem saber, cada grão de arroz abastecida às cooperativas pertece alguém de algum agregado familiar, havendo a necessidade de fazer chegar ao destinatário sob o risco de privá-lo deste produto vital para a sua sobrevivência.

As mangueira frondosas do mercado Mbánguia balançaram ligeiramente agitando ramos e folhas como se concordassem com as palavras do discursante. Uma brisa suave cortou o mercado em diagonal afastando o ar quente e húmido que se fazia sentir.

- Assim, – Prosseguiu o homem de balaláica. – pelo que fizeram, foi-lhes aplicado a pena de vinte chambocos cada e seis meses de prisão.

Um ululu forte e calorosos aplausos emergiram do meio da multidão em saudação à decisão tomada e da boca do homem de balaláica soltou-se uma canção revolucionária que foi imediatamente entoada em coro pelos presentes. No fim, foi trazia ao meio da moldura humana uma cama de ikampala e imediatamente o primeiro ladrão, um homem alto, claro, cabeludo e de barba desleixada, foi amarado de bruços junto a cama para não escapulir. De seguida, um miliciano robusto aproximou-se com um chamboco e quando a ordem foi dada, o chamboco assobiou no ar e no fim ouviu-se um estalo forte acompanhado de um grito de cortar o fôlego. Todavia, as chambocadas prosseguiram com o ladrão agritar pedindo mil desculpas. Este gesto, repetiu-se para o resto do grupo e foi muito doloroso assistir, contudo, parte dos espectadores incitava o miliciano a chamboquear demasiadamente para servir de lição a outros homens com pensamento semelhamente a dos quatro ladrões.

Quando o “espectáculo” terminou, as saidas do mercado foram abertas para permitir a retoma da vida do mercado e os ladrões foram levados de Waz para o calaboiço. E como não podia deixar de ser, o sucedido alimentou conversas quase o resto do dia e, pelo interesse que o assunto suscitara, certamente que servira para desencorajar atitudes semelhantes em muitos que até então roubavam ao povo.
- Allman Ndyoko - Moçambique, 13/10/2010


Vocabulário:
Ikampalacorda de palha tecida que normalmente no norte de Moçambique serve para fazer o leito da cama feita na base de estacas;
ChambocoCacete. Chamboco foi uma expressão que evoluiu ou foi frequentemente usado no tempo em que Moçambique adoptara o socialismo;
Chamboquearacto de cacetear;
Waz Carro de fabrico russo, que geralmente era usado pelas forças de defesa e segurança do período socialista.

8/09/10

OS RAPTORES E A MAGIA NEGRA - Um conto de Allman Ndyoko

(Clique na imagem para ampliar)
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Era uma noite de lua cheia e de céu ornado de estrelas. No povoado de Mbomela fazia frio que se sentia até as entranhas da medula e no céu iluminado, aves nocturnas e de rapina sobrevoavam o espaço cortando a aldeia de lés-a-lés num vôo sem retorno. A floresta, na sua imensidão, repousava em silêncio tumular  escutando os assobios desesperados dos grilos e o bater das asas dos mochos e morcegos que davam vida à noite.

O povoado de Mbomela estava silencioso e nos quintais de muitas palhotas, linguas de fogo bailavam no espaço crepitando, de quando em vez, ao prazer do vento, enquanto em volta corpos de homens e mulheres mal protegidos procuravam incansavelmente o calor da fogueira para extinguir o ar frígido que teimava fazer investidas aos aldeões incautos. Enquanto se aqueciam na fogueira, os aldeões iam aguardando com ansiedade e paciência as ordens dos anciãos, reunidos com muntela na chitala da povoação, conversando sobre a onda de raptos de raparigas e mulheres adultas que fustigava a aldeia Mbomela. Naquela semana, haviam circulado no povoado rumores sobre um grupo de homens de povoações distantes que raptava mulheres no caminho que conduzia a fonte e lhes encaminhavam às suas povoações, onde após diversas incisões ao longo do corpo e diversos rituais de convocação da amnésia com vista ao esquecimento total do passado e, principalmente, da sua proveniência, inseriam-as na nova comunidade, onde podiam casar-se com a finalidade de reproduzir para povoar a aldeia dos raptores. Estas mulheres adquiriam imediatamente os direitos sociais detidos pelas mulheres nativas e em casos muito raros conseguiam retornar às suas aldeias de origem, maior parte das vezes, sob a cumplicidade de alguém da nova comunidade que sentia compaixão por elas, principalmente, as que haviam deixado filhos menores na sua comunidade.

Entretanto, as mulheres de Mbomela achavam-se aterrorizadas com as notícias que circulavam, pois viam-se inevitavelmente impelidas ao perigo pela força dos papéis sociais desempenhados na comunidade, cujo alguns obrigavam-as dia-após-dia a percorrer distâncias incríveis em busca da água, elemento essencial da vida humana, em zonas veiculadas como prováveis esconderijos dos raptores. Todavia, o conselho dos anciãos da povoação havia tomado em conta a preocupação e naquela noite frígida e silenciosa encontrava-se reunido na chitala com um muntela para encontrar a solução do problema.

Volvido algum momento, a reunião chegou ao fim e o muntela trajado de retalhos de peles de animais ferozes e com amuletos pendurados ao pescoço avançou até ao limiar da povoação, onde com ajuda de um rabo peludo de leão, simbolo do poder mágico-tradicional, fez um circulo em volta da aldeia. De seguida, fez uma cruz no chão e no ar da entrada do povoado balbuciando algo imperceptível que dir-se-ia um cântico mágico e no fim, caminhou despido em plena luz lunar até ao terreiro, onde a dentada degolou um galo e deixou-o estrebuchar até a última agonia. Um grupo de quatro anciãos trouxe um pote contendo água e raizes de diferentes plantas e depositaram em frente do muntela que sacudia pausadamente no ar o rabo de leão dizendo algo imperceptível. Depois, o muntela mergulhou uma cabaça na infusão do pote, levou aos lábios, encheu a boca e borrifou o líquido com força sobre a ave já morta e disse:

- Chamem as raparigas e as mulheres adultas para o ritual.

Rapidamente, vários anciãos sairam em busca das raparigas e mulheres adultas em idade reprodutiva, enquanto o muntela retalhava a mão e a dentada o galo morto sob o olhar curioso de alguns anciãos que lhe assistiam em silêncio. No entanto, o muntela juntou os retalhos da ave na infusão e mexeu-a com ajuda de um pau, razoavelmente, comprido dizendo palavras estranhas e desprovidas de sentido. No fim, fez uma enorme fogueira e cantando no silêncio da noite com a voz nítida, deu um salto brusco sacudindo o velho corpo numa coreografia contagiante.

Dali em breve, o terreiro ficou repleto de mulheres e o muntela fez incisões na testa aplicando seguidamente um pó negro de ervas queimadas e trituradas. Depois, as mulheres beberam a infusão e o muntela advertiu:

- O que acabaram de beber chama-se infusão da velhice e qualquer pessoa que quiser raptar-vos verá em vós autênticas velhotas andando trémula e apoiando-se à bengala. Por isso, quando se encontrarem com possíveis raptores não tenham medo e procurem depositar a vossa fé neste ritual que acaba de acontecer.

Dito isto, as mulheres dispersaram-se e o terreiro ficou novamente silencioso. O muntela extinguiu a fogueira, vestiu-se calmamente e na mesma noite abandonou a aldeia acompanhado por seis anciãos.

Ao alvorecer, o dia nasceu brumoso e ruidoso. Ventos moderados lançavam-se contra a floresta acompanhados de chuva miúda e obliqua que vergastava o ambiente provocando o cheiro intenso da poeira.

Um grupo de mulheres de Mbomela saiu em busca da água na floresta. Caminhou durante muito tempo no meio da mata fechada e num atalho tortuoso ladeado de arbustos de sombras escuras e por fim, aproximou-se a fonte. Já na floresta próxima um grupo de dez homens raptores munidos de cordas e catanas ergueu-se entre as árvores. Lançou o olhar às mulheres e, curiosamente, viram um grupo de oito velhas centenárias com pequenas bilhas à cabeça andando vagorosamente com ajuda de bengalas feitas de ramos de árvores secas. As mulheres passaram disfarçadas em frente dos raptores e em seguida alcançaram a fonte, onde encheram as bilhas de água e voltaram a povoação passando novamente em frente dos raptores que lhes olhavam com desinteresse.

Entretanto, o dia passou sem que os raptores lograssem raptar alguém e os dias que se seguiram o cenário não mudou e os raptores voltaram a ver as mesmas velhas centenárias passando cansadas e com pequenas bilhas à cabeça. Nisto, os homens exaustos e sem resultado acabaram desistindo à intenção regressando definitivamente a sua povoação. 
- Allman Ndyoko, 12/03/2008.

GLOSSÁRIO
Muntela – Curandeiro;
Chitala – Local de convivio social dos homens; 

12/23/09

O DESAFIO - Allman Ndyoko

Tinham caminhado toda manhã no meio da mata fechada e debaixo do céu sinistro coberto de nuvens enormes, pesadas e escuras sem que trocassem palavra alguma. Levando as costas o filho mórbido, a casa toda mudada a cabeça num volumoso atado de pano, Achepe marchava em frente do Nkule, seu marido, num passo nervoso e sem ocultar a sombra de aflição e tristeza que lhes perspassavam pela fisionomia. O filho menor estava doente há dias. Não comia e nem falava e o infurtúnio sucedera subitamente quando brincava na companhia de amigos no terreiro da casa do tio materno. Várias tentativas haviam sido accionadas para devolver a saúde ao menor, mas todas mostraram-se infrutíferas restando agora, como último recurso, a consulta do wihiyango mais afamado da região para desvendar o mistério ocultado por detrás da doença.

Caminhando em silêncio e com a mente mergulhada em profundas meditações, Nkule ia tentando advinhar o mistério que rodeava a doença do filho e o provável autor. De quando em vez, maldizia a tradição que lhe obrigara a viver na aldeia dos pais da esposa até nascer o primeiro filho, pois, na sua óptica o infurtúnio que se alojara no filho sobrevinha indubitavelmente da acção de um feiticeiro da família da mulher. Enquanto ordenava o juizo deste modo, Nkule aguardava com ansiedade a chegada à aldeia Mwanga, que ficava a norte de Miteda, onde esperava confirmar às suas deduções.

Entretanto, o casal prosseguiu a caminhada tortuosa no caminho apertado e ladeado de arbustos e capim alto. O silêncio entre eles era tumular e a aflição pelo filho era-lhes maior. Porém, à medida que avançava a passos largos em direcção ao destino ia se ouvindo, em forma de eco, nas proximidades do caminho, o sistemático e repetido «coc, coc, coc, coc,...» do batimento dos pés descalços no chão castanho e rico de humo, que era característica principal do planalto makonde em todas suas extensões. Já a meio caminho do destino, dois perdizes passaram próximo deles voando de forma razante e fazendo-lhes sentir no rosto o ar deslocado pelas asas. Nkule assustou-se, tossiu uma vez e riu exibindo a sua dentadura branca, cor de marfim, afiada com mestria conforme as velhas tradições. O sucedido lhe causara uma impressão dramática a ponto de fazê-lo esquecer temporariamente o drama que vivia. Olhou atrás sorrindo, meneou a cabeça e quando volveu o olhar, passou a costa da mão no rosto e sentiu os sulcos das tatuagens marcadas indelevelmente na pele. Roçou-as levemente, sem dar em conta, e no fim, comentou:

- Aquelas aves são demasiadamente atrevidas. Contudo, espero que não estejam a anunciar um mau augúrio.

Achepe não pronunciou palavra alguma e limitou-se a marchar serpenteando o corpo e fazendo tocar ao de leve no capim seco os vestes que trazia.

De repente, um vento forte agitou o capim e torceu as árvores, fustigando-as furiosamente e ameaçando derrubar a trouxa que Achepe carregava no alto da cabeça. A mulher fez um movimento brusco para atrás e afrente e, tentando equilibrar a trouxa, prosseguiu a marcha sob o olhar atento e vigilante de Nkule que lhe seguia acompanhando-a os passos.

- Pelo visto, vai chover. – Afirmou Achepe, finalmente, passados escassos momentos após a acção fustigante do vento.
- Certamente. Por isso, temos que apressar para que achuva não molhe-nos demasiadamente.

Manteram-se calados novamente e continuaram a andar cada vez mais rápido. Passado algum momento, uma claridade ofuscante e violenta brilhou instensamente, o céu bramiu e dentro das nuvens estrondeou brutalmente. Num instante, o casal viu-se alucinado visualmente pelo relâmpago e ensurdecido pelos ribombares dos trovões. De súbito, a chuva despenhou em catadupa encharcando o casal dos pés à cabeça e obrigando-o a refugiar-se debaixo de uma frondosa mangueira que se achava ao lado do caminho que seguia em direcção a aldeia.

Quando a chuva abrandou, o jovem casal retomou a marcha já sentido nas entranhas da medula o ar frígido do planalto. Volvido alguns instantes, a chuva parou e começou a ouvir-se de longe vozes de gente trazidas pelo vento. Nisto, acelerou o passo procurando alcançar as vozes o mais breve possível. Cruzaram-se com alguns aldeões vindos das machambas e poucos metros depois alcançaram o limiar da aldeia. A aldeia era excepcionalmente grande e bela, conhecida e admirada pelo esplendor invulgar que revestiam as festas tradicionais e sobretudo pelo excepcional prestígio de que gozava o chefe da aldeia e o wihyango Nkapalule. Curiosamente, o chefe da aldeia chamava-se Mwanga e era demasiadamente idoso; Tinha uma estatura baixa e era considerado uma personalidade invulgar, pensador original e filosófico. O seu prestígio e seus feitos heróicos haviam se espalhado por todo o planalto e não havia linhagem makonde alguma que não conhecesse alguma das suas proezas.

No entanto, o casal aproximou-se a uma palhota, onde uma mulher grávida peneirava o milho sentada debaixo do beiral. Nkule pediu licença e depois de autorizado cumprimentou a mulher grávida e no fim, quis saber onde vivia o wihyango Nkapalule. A mulher indicou com o dedo uma palhota que se achava em frente da chitala. Nkule agradeceu cordialmente e retomou a marcha, juntamente com a sua esposa, dirigindo-se às palhotas próximas a chitala sob olhar devorador dos aldeões que lhes apreciava como se estivessem em exposição. Enquanto caminhavam, Achepe ia apreciando as belas palhotas da aldeia e sua gente mansa e alegre.

À semelhança da disposição das palhotas da maioria das aldeias makondes, a estrutura arquitetónica da aldeia Mwanga não fugia a regra. A aldeia era de forma circular e as palhotas que se encontram na primeira fila à volta do terreiro central eram habitadas por um homem ou uma mulher da mesma likola a que pertencia o chefe da aldeia. No terreiro central emergiam árvores de fruto e no centro se encontrava a chitala, casa de reunião dos homens. Na chitala os homens passavam o seu tempo livre esculpindo, conversando e tomando a mesma refeição, enquanto as mulheres passavam parte do seu tempo trabalhando no terreiro junto das suas habitações e comendo juntamente com as vizinhas à sombra da árvore ou do beiral da palhota ou dentro dela no tempo de chuva.

Nisto, ao chegarem na casa do wihyango Nkapalule foram recebidos por duas mulheres idosas que trataram de receber a trouxa que Achepe trazia à cabeça e lhes servir igoli no beiral da palhota para se acomodar. Nkule pediu água para beber e quando uma das mulheres que lhes recebera afastou-se em busca da água, Achepe despredeu nas costas o filho mórbido e deitou-o no leito do igoli cobrindo-lhe uma capulana com delicadeza. Quando a mulher trouxe água fresca numa cabaça e entregou ao Nkule, a outra entrou na segunda palhota que assomava no quintal para lhes anunciar.

Gerou-se, no entanto, um momento de extrema espectativa durante o qual o casal esteve atento à movimentação das mulheres que por coincidência eram esposas do famoso Nkapalule. Pouco tempo depois, saiu da palhota principal e maior uma figura humana cheia de rugas, esquelética, velha, de boca sem dentes e chupada. O homem era magro, por natureza, a ponto de parecer não ter carne sobre os ossos. Atravessou o terreiro da casa andando lentamente e curvado, e, dirigiu-se ao encontro dos visitantes.

- É ele? – Inquiriu Achepe, com os olhos esbugalhados de pasmo e pavor.
- É... Mas não te incomodes ele é apenas velho. – Respondeu Nkule com toda serenidade que lhe foi possivel. Contudo, ele também estava embaraçado, mas fez um esforço para não o demostrar.

De costas curvadas o ancião passou lentamente em frente deles e entrou na terceira palhota. A esposa mais velha do ancião convidou os visitantes a entrar na palhota, onde se encontrava o marido. Quando os visitantes se acomodaram numa esteira de palha do lado oposto do wihyango, Nkapalule, disse:

- Sei tudo o que levou-vos a me procurar e tudo o que se passou convosco pelo caminho. Não me perguntem porquê, pois, essa é a minha virtude.

Nkule espantou-se pelas declarações e, por fim, fixou o olhar no rosto do velho. Apesar da pequena escuridão que se desenhava no interior da palhota, naquele momento descobriu que nas órbitas profundas do Nkapalule os olhos eram extraordinariamente vivos e atentos e a sua face estava profundamente tatuada de dinembo que lhe emprestavam a elegáncia e perpetuavam a sedução e o orgulho de ser makonde. Porém, manteve-se atento às palavras do ancião.

- Vocês querem saber o que se passa com o vosso filho. – Prosseguiu Nkapalule. – E querem saber quem provocou esta desgraça.
- Sim. – Apressou-se Nkule a responder com convicção.
- Muito bem! – O velho arregalou os olhos e com ar misterioso, continuou: - Vamos rogar que os espiritos dos antepassados conceda-nos permissão para que o vosso desejo seja realizado.
- Assim seja. – Anuiu Nkule visivelmente curioso.

Nkapalule despejou na esteira ossadas de diferentes animais bravios, pegou numa faca e começou a cantar a pleno pulmões olhando para os ossos. Enquanto cantava, as suas esposas entraram na palhota respondendo em coro com uma aperfeiçoada concordância e comoção, e, por fim, sentaram-se ao seu lado prosseguindo com o coro. De repente, os olhos do wihyango mudaram de expressão, os lábios tremeram e a voz mudou de tom. Agitou a faca freneticamente durante alguns instantes e, a dado momento, manteve-se sereno a escutar a voz do coração. Nesse instante o cântico parou e fez-se um silêncio quase absoluto. Depois, suspirou profundamente, inalou um punhado de rapé meneando a cabeça, aspirou três vezes consecutivas e apontando a figura da Achepe, disse:

- O seu tio materno é o causador desta moléstia. Ele pretende matar o seu filho para lhe servir na machamba em forma de lindandocha. Voltem a casa o mais breve possível e digam a ele que eu lhe apontei como o causador do mal que se manisfesta nesta criança. Se ele sentir-se afrontado, lesado e difamado, sem justa causa, poderá queixar-me em qualquer aldeia e se provar que eu sou culpado, digo-vos do alto da minha dignidade que, deixarei de ser wihyango. Porém, se as minhas palavras forem verdadeiras verão que ele não se insurgirá e limitar-se-á a fazer uma coisa, que agora não vos digo, que restituirá a saúde ao vosso filho.

- Mas tem a certeza mesmo que o autor desta moléstia é o meu tio? – Inquiriu Achepe incrédula.
- Tenho, pois, o que digo não vem de mim... tudo é divino.
– É que não pode ser!
- Mas é... – Respondeu Nkule visivelmente revoltado.

Achepe baixou a cabeça, esfregou as vistas com a ponta da campulana que trazia enrolada ao corpo e, logo, as lágrimas não tardaram a salatarem-lhe dos olhos. Indignada pela revelação estrondosa e inesperada, Achepe, começou a chorar profundamente deixando escorrer, pelas faces negras e tatuadas, lágrimas copiosas.

No fim de algum momento, Achepe acalmou-se; Limpou-se as lágriamas com as palmas da mão e soluçando pós o filho nas costas. Nkule pagou a consulta com um um balde menor de amendoim que tirou da trouxa que a mulher carregava e abandonaram a palhota de regresso a casa. Quando atravessaram o limiar da aldeia e se embrenharam pela floresta adentro através de um carreiro que lhes foi indicado por uma das esposas do Nkapalule, as sombras da noite invadiam a floresta e as aldeias makondes, e, de longe ouvia-se o rufar dos batuques que vinha de algures distante trazido pelo vento. No alto do céu, os morcegos e outras aves de rapina iniciavam o seu voo habitual saindo de maneira espectacular das cavernas e dos troncos seco de árvores frondosas e seculares.

Ao chegarem a aldeia, dirigiram-se a casa do tio da Achepe, onde curiosamente esperava-lhes sentado à porta da sua palhota.

- Não digam nada! – Apressou-se o tio a dizer, assim que Nkule pediu licença. Depois, prosseguiu. – A ganância e o egoismo levaram-me a molestar o vosso filho de forma abominável. Sei que não mereço perdão, mas ao menos permitam-me restituir a saúde ao vosso filho.

Parado diante a entrada da palhota, Nkule, ouvia o discurso fervendo de ódio. Naquele momento o homem quis desferir um golpe, mas a sua consciência falou mais alto e, nisto, limitou-se a olhar a figura do tio abanando a cabeça desaprovadamente.

No entanto, reinou entre eles um silêncio de magoar os ouvidos, durante o qual Achepe aproveitou tirar da cabeça a trouxa que trazia e entregar o filho mórbido ao tio. Ao recebê-lo encaminhou para o interior da palhota, onde deitou na esteira e saiu para a outra palhota que se encontrava no mesmo terreno. Nkule e Achepe assistiam com interesse a movimentação do molestante vigiando-lhe todos seus movimentos. Pouco depois, o molestante voltou com uma cabaça cheia de água, parou no limiar da porta da palhota, onde se encontrava o doente e começou a confessar o crime proclamando, de seguida, que a doença não prossiga. Ao terminar a proclamação, que foi feita em voz baixa para que os vizinhos não ouvissem, cuspiu dentro da cabaça mormurando numa linguagem imperceptivel e lançou a água sobre os pés do doente. Feito isto, Nkule e Achepe levaram o filho a casa e no dia seguinte, incrível que pareça, o menino acordou sarado...
- Por Allman Ndyoko - 01/03/2007.

Glossário
Wihyango advinho.
Lindandocha Fantasma ou escravo mágico, isto é, entre os makondes antigos existia a prática de matar magicamente alguém e posteriormente servi-lo de escravo para trabalhar na machamba e outros locais. Para gente comum a pessoa morria de verdade, mas para o lado mágico a pessoa passava a viver, mas sem o contacto nem o conhecimento dos progenitores se o autor da morte não forem eles.
Igoli Cama de base feita de estacas de árvores e o leito tecido de uma corda de palha trançada.
Chitala Alpendre erguido no terreiro da aldeia e funciona como local de convivio dos homens.
LikolaLinhagem.

12/15/09

O MAPIKO

O mapiko foi desde sempre a figura mais importante da cultura makonde, simbolo vivo de um espirito humano usado pelos homens para dominar pelo medo, mediante bailarinos mascarados, as mulheres e os jovens ainda não iniciados nos ritos de iniciação, contribuindo não só para integrar as crianças no grupo dos adultos, como ajudando a estabelecer o equilíbrio entre o grupo dos homens e o das mulheres. O mapiko foi e continua a ser uma actividade lúdica que tem conquistado muitos adeptos e serve de pretexto ao longo dos tempos para servir de uma actividade competitiva, onde determina-se os melhores grupos cujo mérito advém no facto dos grupos pautarem pela linha da originalidade na dança e máscara. Contudo, em tempos muito recuados as actividades competitivas do mapiko originaram conflitos sangrentos entre grupos rivais desta dança que simboliza o povo makonde. As vitimas destes conflitos, na sua maioria jovens, acabavam morrendo muitas das vezes devido a gravidade dos ferimentos que eram feitos pelos batuques conhecidos por vinganga e outros viam-se salvos graças aos préstimos dos vakulaula que magicamente e usando o método de takatuka transferiam as feridas de um ponto do corpo para o outro que não representasse perigo de morte para a vítima. Este comportamento de jovens daquela época deixou marcas profundas na história do percurso do povo makonde, onde algumas linhagens, como por exemplo, vanachuluma e vamboei chegaram a cortar as suas relações sociais durante muito tempo devido a um triste e trágico episódio sucedido em tempos muito passados, conforme passo a narrar:

Era uma atarde de domingo. O dia ia ao fim e a luz do sol desaparecia pouco-a-pouco anunciando a chegada da noite. O terreiro da aldeia dos vanachuluma achava-se cheio de gente que desde ao princípio da tarde assistia a competição de mapiko. O som dos tambores, de quando em vez intercalado pelo som do lipalapanda, avivava a povoação provocando um barulho ensurdecedor, próprio de ambiente festivo.

Tinha vindo na aldeia o grupo de mapiko de jovens vamboei que depois da actuação dos anfitriões foi convidado a mostrar o que mais sabia na arte de dançar o mapiko. Rapidamente, vinganga e ntodje soaram impetuosamente irrompendo o terreiro da aldeia de forma rude e um lipiko mboei saltou para o meio da roda humana dançando com estilo e conhecimento e acompanhando com perfeição o tam-tam dos tambores. Uma salva de palma encheu o terreiro e o intusiasmo apossou-se aos espectadores criando rastos de inveja no grupo de mapiko local. Decorridos alguns minutos, os tambores calaram-se e o grupo de percussionistas começou a cantar com ímpeto cânticos antigos enquanto o lipiko se dirigia às crianças e mulheres procurando domina-las pelo medo. Pouco depois, o som dos tambores voltou a fazer-se presente pondo em delírio os espectadores que acompanhando os cânticos dos percussionistas, batiam as palmas e ululavam de contentamento pela exibição espectacular do jovem lipiko mboei.

Passado algum momento, os tambores cessaram e o lipiko recolheu-se numa palhota que se encontrava nas imediações para descansar. Os percussionistas levaram os batuques ao lume para aquecer a pele que já se achava abrandada e, nesse instante, Apediupinde, um jovem da linhagem vanachuluma e percussionista do grupo juvenil local de mapiko, atravessou o centro da roda humana e bem perto do rosto de um dos jovens mboei, que na altura aquecia chinganga ao lume, disse com desdém:

- Nós somos o melhor grupo de mapiko do planalto. – Passou a mão à cabeça e acrescentou. – Vocês não passam de um bando de mulheres que finge ser homem com todas suas propriedades somáticas e psíquicas.

O jovem de chinganga ergueu-se, olhou para o interlocutor com ar de desconsideração e continuou a aquecer o batuque sem dizer uma palavra se quer. Apediupinde girou os calcanhares e voltou a atravessar o meio da multidão dizendo maldições inúteis com a testa vincada de profundas rugas devido ao facto do público nachuluma aplaudir e simpatizar-se pelo grupo juvenil mboei.

O som dos tambores voltou a irromper novamente o terreiro acompanhado do som lipalapanda que cortou o ar, vezes sem conta, chegando a ouvir-se nas povoações vizinhas do interior da floresta. O lipiko atirou-se ao meio da roda humana e recomeçou a dançar fazendo gestos para os espectadores. Dançou durante muito tempo afastado dos espectadores e depois, aproximou-se a um pequeno aglomerado de crianças. Os petizes fastaram-se desesperadamente assustados pela máscara envergada pelo lipiko. Apediupinde aproximou-se sorrateiramente o lipiko e empurrou-o energicamente caindo de seguida nos braços do público que imediatamente repudiou a atitude. Ngole, um jovem mboei, tomou o chinganga que tocava, correu rapidamente ao encontro de Apediupinde com o olhar rude e lábio inferior apertado entre os dentes. Assim que se encontrou perto, arremessou o chinganga cantra Apediupinde atingindo-o a testa. O público correu em debandada e num abrir e fechar de olho desenrolou-se uma luta feia entre jovens dos dois grupos de mapiko.

Nisto, Apediupinde levou a mão à testa e de súbito, um jato de sangue regou a mão ensanguentando-a total e imediatamente. A cabeça andou-lhe a roda, deu três passos incertos e no fim, tombou no chão beijando violentamente a terra castanha do terreiro. Entretanto, Ngole foi agarrado pelos jovens nachuluma e acidentalmente uma catana atravessou-lhe a nuca. O jovem caiu por terra estrebuchando e regando-a de sangue quente. Vendo o sucedido os outros vamboei fugiram a sete pés.

Durante um instante breve como relâmpago, Apediupinde foi levado a casa de nkulaula, onde foi tratado com ervas e feito atravessar o meio da rachadura da nala para fazer takatuka. Quando passou para o outro lado da árvore, a ferida desapareceu misteriosamente da testa e veio alojar-se no braço. Depois, foi conduzido a casa, onde ficou a convalescer.

No entanto, ao anoitecer aquele dia, os parentes do Ngole removeram o corpo e dias depois o nkulungwa dos vanachuluma reuniu os jovens da sua povoação no terreiro, onde repudiou a atitude vergonhosa protagonizada contra os vamboei e proibiu o uso da violência e a realização de competições juvenis de mapiko na sua povoação.
Dali em diante, jamais ocorreu um incidente similar no planalto makonde, contudo, o sucedido originou uma grande rivalidade disfarsada entre os jovens das duas linhagens que só veio a conhecer o seu término com a chegada dos portugueses.
- Allman Ndyoko, 10/03/2008.


GLOSSÁRIO
Vakulaula –
O plural de nkulaula que significa curandeiro;
Vinganga – O plural de chinganga que quer dizer batuques pequenos, achatados e meio delgados;
Nkulaula – Curandeiro;
Takatuka – Método tradicional que consiste na remoção mágica de uma ferida de um ponto do corpo para o outro que coloca em perigo a vida do paciente;
Ntodje – Batuque delgado;
Nkulungwa – Chefe da povoação;
Vamboei – Plural de mboei que significa pessoas da linhagem mboei;
Mboei – Alguém da linhagem mboei;
Vanachuluma – O plural de nachuluma que quer dizer pessoas da linhagem nachuluma;
Nachuluma – Alguém pertencente a linhagem nachuluma;
Lipiko – Dançarino de mapiko geralmente mascarado;
Mapikos – O plural de lipiko e também assim se chama a dança de máscara feita pelos makondes de Moçambique;
Ñala – Árvore através da qual o curandeiro usa para fazer curativos ao doente através do uso do método de takatuka.

12/11/09

MANGONDÈ


Um bando de aves em vôo apressado cortaram a aldeia em diagonal enquanto andorinhas em seu estilo característico batiam as asas em franca liberdade no céu claro, fresco e azulado de Mahunda.

Kabwela, um homem afável da linhagem vamatambwe, alto, forte, de rosto tatuado e dentes afiados conforme mandava a tradição, atravessou o limiar da povoação empunhando uma catana na mão e levando nas costas um arco e flechas e seguiu um carreiro serpenteante que conduzia à floresta adentro. Andou no meio da floresta cerrada e tenebrosa ouvindo os pássaros que lhe cantavam serviçalmente naquela manhã bela e boa para um passeio no bosque. Com a barba desleixada, descalço, palmas ásperas e um andar na floresta experiente, Kabwela marchava firme com a fisionomia denunciando um homem maduro, vivido e que deleitara e usara abusivamente os prazeres da vida.

Entretanto, aproximou-se a uma moita bem tenebrosa e logo deteve-se com pasmo. Recuou dois passos e voltou a deter-se fazendo bater as pálpebras vezes sem conta. Passou a mão aos olhos, esfregou-os rapidamente e continuou olhando fixamente na moita. Em frente dos seus olhos uma figura humana envolta em pano branco, semelhante ao que se envolve aos cadáveres, lhe aguardava cabisbaixa e em silêncio tumular. O sujeito tinha a face pálida, olhos esbugalhados e um olhar apavorado que denunciava uma excessiva insatisfação. Kabwela olhou-o fixamente e no fim, pareceu-lhe familiar. Matutou insistentemente procurando se lembrar do homem. Rapidamente veio-lhe a cabeça. Deitou no chão a catana, o arco e as flechas que trazia e tremendo de medo no meio da floresta fugiu a sete pés com as mãos sobre a cabeça e gritando aos berros:

- Acudam-me, acudam-me, acudam-me...

De repente, a figura em volta em pano branco seguiu o gesto correndo atrás de Kabwela de forma incrível e sobre-humana. Pouco depois, Kabwela tropeçou um tronco escondido e enterrado no capim alto que predominava a floresta e logo o sujeito alcançou-o. Apeado em sua frente, o sujeito olhou-o assustadoramente com olhos ofuscantes e lhe rodeou com ar ameçador. Parou levando a mão às costas e, com uma rapidez indiscriptível, começou a bater Kabwela com uma haste delgada e flexível que parecia de uma árvore. Kabwela gritou forte e profundamente provocando um eco na imensidão da floresta, que se propagou imediatamente chegando a ouvir-se nas palhotas iniciais da povoação. No entanto, o sujeito bateu-lhe forte e feio e logo as lágrimas não tardaram a saltarem-lhe dos olhos. Desesperadamente tentou erguer-se para se escapulir, mas o homem de pano branco impediu-o deixando-lhe cair no tapete verdejante da floresta. Passado um momento, o agressor parou. Uma tempestade forte fustigou, repentinamente, a floresta e, precisamente, no ponto onde Kabwela lutava em vão para se pôr em fuga. Nesse instante, o agressor desapareceu misteriosamente entre nuvens densas e negras que, inexplicavelmente, formaram-se naquele ponto do bosque. Nisto, Kabwela ergueu-se com a cabeça mergulhada entre os braços. Soluçando fez uma ronda com os olhos em volta da floresta e temeroso fugiu, novamente, a sete pés fazendo caretas de dor.

Sem olhar para atrás, Kabwela, correu incansavelmente como um antílope e depois de muito tempo e de uma fuga desorientada desembocou na aldeia reiniciando os berros como uma criança.

A povoação parou e os aldeões curiosos seguiram o infeliz cerimoniosamente até a sua palhota, onde no meio do quintal deixou-se cair chorando fortemente esgravatando a terra e, de vez enquando, cerrando os punhos cheios de areia. Kabwela chorou durante muito tempo lacrimejando copiosamente e depois calou-se. Dois anciãos sairam no meio dos curiosos que o assistiam e ajudaram-o a erguer-se do chão. Depois, banhado de areia, encaminharam-o à palhota, onde após uns breves instantes de silêncio, os anciãos quiseram saber:

- O que sucedeu?

Kabwela calou-se. Passado algum momento suspirou profundamente, mergulhou a cabeça nas mãos e mentalmente começou a reviver o que lhe sucedera na floresta. No fim, soluçou uma vez e tremendo, respondeu:

- Ia andando a caminho da floresta, onde tencionava visitar as minhas armadilhas e arranjar algumas estacas para concertar o celeiro, quando, de súbito, numa moita tenebrosa vi um vulto envolto em pano branco. Parei, olhei fixamente e vi que era alguém que conhecia e que já não está no mundo dos vivos. Fiquei assustado e fugi. – Kabwela voltou a chorar fortemente limpando depois com a costa da mão um fio de ranho que lhe escorria pela narina abaixo. De seguida, calou-se e voltou ao ponto onde havia interrompido. – A pessoa perseguiu-me e junto de um tronco cai...

- É um mangonde. – Concluiu um dos anciãos. – É preciso sadaca para que não volte a reaparecer-lhe.

- Ele está aborrecido com alguma coisa. – Disse o outro ancião. – E para saber o que é será preciso consultar um wihyango.

- Não é preciso consultar a ninguém. – Disse Kabwela triste. – Ele é meu avô que não cheguei de conhecer e segundo os relatos da minha mãe, ele faleceu na floresta de kundonde, presumivelmente, devorado por leões quando voltava a povoação. Uma vez que não se teve certeza desse acontecimento, ninguém fez matanga. Quando hoje me batia, o avô fez referência a este assunto e advertiu-me que caso não fizesse nada algo fatal me sucederá.

- Então, faça a cerimónia o mais breve possível. – Disse um dos anciãos. – Os mangondes não mentem e podem matar.

- Farei o mais breve possível para que o avô descanse em paz. – Disse Kabwela aterrorizado.

- Estas situações são frequentes e as pessoas que normalmente fazem isto são as que lhe negamos a cerimónia relativa à sua morte. Quando isto acontece eles vagueiam aqui na terra e não são recebido no mundo dos ancestrais. – Disse alguém entre os dois anciãos.

- Então, quer dizer que matanga constitui para os mortos um cartão de entrada no mundo dos antepassados. – Concluiu Kabwela juntando os braços no peito.

- É sim um cartão muito importante para os mortos entrarem no mundo dos antepassados.– Respondeu uns dos anciãos sentado à beira da cama dentro da palhota iluminada por uma lareira que ardia lentamente no centro exalando uma densa fumaça branca. – E para provar isso, a agressão feita hoje basta para ilustrar a importância que a cerimónia tem para as pessoas que passam para o outro lado do mundo.

Entretanto, os anciãos deixaram a palhota e foram às suas vidas, um gesto também imitado pelos curiosos que cercava o quintal do Kabwela.

Dias depois, Kabwela fez matanga tendo , em memória ao seu avô, dado, no seu quintal, uma festa de invejar, onde os aldeões de Mahunda evocaram os espiritos dos antepassados de Kabwela, comeram, beberam e dançaram ao som secular dos tambores. Assim, após aquela festa pomposa à meneira makonde, Kabwela jamais voltou a avistar algo semelhante com o que havia visto na floresta naquela manhã clara, fresca e fatídica, confirmando-se assim o pensamento popular sobre a questão...
- Allman Ndyoko, 19/03/2008.

GLOSSÁRIO
Vamatambwe – Pessoas da linhagem matambwe;
Mangonde – Espirito ou fantasma;
Wihyango – Advinho que também pode ser curandeiro;
Kundonde – Zona baixa do planalto dos makondes;
Matanga – Cerimónia ou festa alusiva a morte de alguém familiar;
Sadaca – Festa que se oferece as pessoas após ter prometido ao antepassados fazer em sua memória.

12/06/09

Contos E Poesias do Índico - HUVILO



(Clique na imagem para ampliar. Gravura fictícia formada por imagens livres recolhidas na net)

Corria o ano de 1840. Nas terras do velho Mbavala, o rei makonde, o sol caia vermelho colorindo o manto verde da floresta. Um grande grupo de guerreiros makondes de troncos nus e com as partes intimas cobertas de pedaços de pano encardido, adquirido nos comerciantes árabes e aventureiros swahil, acompanhavam atentamente, no terreiro da povoação, o discurso contagiante do rei Mbavala. Enquanto discursava, corria nas suas terras, de boca em boca, a surpreendente notícia de aproximação de um grupo Nguni que raptava homens e mulheres e cobrava coersivamente tributos às populações das povoações que ia atacando enquanto avançava em direcção ao extremo norte do actual território de Moçambique. O grupo pertencia a um outro grande grupo de guerreiros Nguni proveniente de Zwangendaba que, por volta de 1837, estivera no vale do Zambeze e em zonas limítrofes semeando terrores entre populações endefesas e mais tarde atravessou o Zambeze, perto de Cachomba, tendo uma boa parte se dirigido para Tambara e outra para o norte atraído pelas notícias de existência de um rendoso negócio de ouro, marfim e escravos.

- Meu povo! – Disse o ancião com uma voz trémula. – Tenham coragem para enfrentar o inimigo que vem. Ele vem de longe e carrega o ódio nos olhos, por isso, vai destruindo tudo que lhe aparece na sua frente. Os nossos mensageiros trauxeram notícias frescas dando conta da aproximação do inimigo. Os nossos irmãos que vivem nas imediações da nossa povoação começaram a chegar aterrorizados pelas notícias da chassina que inimigo vai cometendo enquanto caminha ao encontro das nossas terras...

Enquanto o velho falava para a multidão de guerreiros, pequenos grupos de velhos, mulheres e crianças aproximavam-se sorateiramente às varandas das cabanas que se achavam no limiar do terreiro ávidos de acompanhar as palavras do Mabavala.

- Protejam as crianças, os velhos e as mulheres. Defendam com bravura a nossa tribo e toda a riqueza que os nossos antepassados nos deixaram. Cantem as canções de bravura e coragem para que dignifiquemos o sangue derramado pelos guerreiros mais valentes da nossa tribo.

A multidão ululou, os guerreiros aceneram ao ar arcos e flechas e em conjunto deram o grito de coragem. Havia gente demais e o ar estava abafado. A noite entrava calma trazendo consigo estrelas e o nevoeiro. No alto, uma caravana de passáros cortou o céu num chilreio carregado de apavor. O velho calou-se. Acendeu um tabaco. Aspirou voluptosamente o fumo e, no fim, prosseguiu:

- Vigiem as fronteiras do nosso reino. Coloquem homens em todos os cantos para que o inimigo não nos surpreenda. Na hora da chegada, toquem o lipalapanda – o chifre de antílope – para que todos saibam que o inimigo está nas nossas terras.

Calou-se novamente. Levou o tabaco aos lábios. Puxou duas vezes. Tossiu vezes sem conta e voltou ao ponto onde havia interrompido.

- Meu povo! – Disse o ancião com uma voz entrecortada e trémula. – Preparem esconderijos para que as crianças, os velhos, os enfermos e as mulheres grávidas possam se proteger contra a chassina que vem. Preparem as armadilhas que os nossos antepassados nos ensinaram e ordeno para que esta noite todos guerreiros fiquem de vigia cantando e dançando para afugentar o espirito do medo. O curandeiro Namakhoi fará o trabalho que lhe compete distribuindo alguns punhados de ervas que vos protegerão de todo o mal durante a batalha. Coragem, guerreiros! Coragem...

O kôta virou-se para a corte, cruzou os braços nas costas e fez um sinal indiscrptivel para um dos anciãos mais antigo da tribo. De seguida, abandonou o terreiro dirigindo-se para a grande palhota andando com um cómico aprumo e movendo-se na noite tão cautelosamente como se estivesse a pensar em alguma coisa. Ao chegar a porta, mandou o mensageiro real reunir o chefe dos guerreiros, o curandeiro Namakhoi e outros ancião mais importantes da povoação e no fim, entrou na palhota fechando a porta nas suas costas. O kôta queria se inteirar de tudo, desde a estratégia da guerra até ao tipo da magia que o curandeiro Namakhoi pretendia usar para derrotar o inimigo. No entanto, o rufar dos tambores e o ecoar das vozes fizeram-se ouvir no terreiro. Vozes embaladas na brisa nocturna atravessavam a floresta densa do planalto dos makondes e homens fortes e valentes dançavam e cantavam canções de autores imemoráveis e perdidos na poeira do tempo cujas suas letras passavam de boca em boca e de geração em geração modificando-se constantemente de acordo com o momento. Os guerreiros dançavam em redor de uma grande fogueira contorcendo-se com abandono, simulando combates, zombando o inimigo e fumando bangui, a rainha da coragem. A medida que dançavam, as labaredas cresciam, a lenha ardia com intensidade e, de vez enquando, pequenas faúlhas saltavam no ar apagando-se rapidamente na noite fria.

O rei saiu da palhota, soltou um profundo suspiro e parado em frente da palhota pôs-se a contemplar no escuro a densa floesta, sentindo o ar frio da noite e aspirando o agradável aroma do planalto. Caminhou lentamente pelo quintal com os braços cruzados nas costas como era o hábito. Porém, deteve-se num tronco de Mula e sorriu consigo mesmo animando a sua face tatuada e dominada de profundos sulcos. O kôta recordava-se com saudade a sua juventude, principalmente, na época em que com bravura enfrentava gente de outras tribos que caçavam mulheres makondes nas machambas e riachos, afim de vende-las como escravas aos comerciantes árabes e aventureiros swahil. Fechou os olhos como se quisesse trazer de volta aqueles momentos e depois, deu meia volta e encaminhou-se novamente a palhota movendo-se com um aprumo forçado e cómico, típico da idade.

Já a madrugada, um jovem, que o chefe dos guerreiros escalara para guarnecer as imediações da povoação, irrompeu no terreiro correndo apavorado e vomitando sangue coagulado. Os guerreiros Nguni haviam lhe mutilado a lingua e obrigado a se dirigir a povoação afim de anunciar a sua chegada. O tam-tam dos tambores cessou imediatamente; Dois guerreiros dirigiram-se a palhota real, anunciaram ao rei o sucedido e voltaram novamente ao terreiro, onde os outros guerreiros haviam já abandonado e tomado a posição no limiar da floresta e nos ramos das árvores que se espalhavam nas redondezas da povoação. O rei e a corte fugiram para a floresta, onde foram escondido num abrigo preparado para tal. De súbito, a povoação ficou silenciosa e quando o sol ia se erguendo lentamente e a queimar, pouco a pouco, o orvalho no capim e nos arbustos ouviu-se um forte ulular e um grande grupo de guerreiros Nguni vestidos de peles e munidos de lanças e escudos de peles de animais bravios irrompeu o centro da povoação, pilhando mantimentos e animais domêsticos, quebrando potes e outros objectos de barro, e, quando ia incendiar as palhotas, os guerreiros makondes lançaram-se contra o inimigo dirigindo-lhe flechas envenenadas com ervas selvagens. A batalha levou muito tempo e, usando uma táctica de guerra desconhecida entre os makondes, os guerreiros Nguni infringiram pesadas derrotas aos guerreiros do rei Mbavala. Os prisioneiros de guerra foram severamente humilhados e quase metade da população foi escoraçada numa louca perseguição até às margens do rio Rovuma, onde atravessando a nado e numa visível situação de desespero refugiaram-se para as terras do Tanganhica, rei dos Massai, no actual território da República da Tanzania. Um outro grupo de Makondes liderado pelo o rei deposto exilou-se nas terras do Mataca, o rei ajaua, na actual província do Niassa.

Entretanto, meses depois guerreiros makondes apoiados por homens valentes e corajosos da tribo ajaua expulsaram os invasores tendo-lhes perseguido até às terras mais distantes, em direcção ao centro do actual território de Moçambique . Passados alguns dias, o rei Mbavala e a sua corte regressaram do exílio acompanhado do rei Mataca. Porém, os que haviam atravessado o Rovuma jamais voltaram e por lá criaram a comunidade dos makondes da Tanzania. Nisto, alguns dias depois, houve uma grande festa na povoação que durou uma semana comendo-se carne caçada no interior da floresta, bebendo-se diversas bebidas tradicionais, dançando-se ao som dos tambores e assistindo-se diversas sessões de mapico. Como gratidão dos feitos heróicos dos guerreiros ajaua demonstrados no momento da expulsão e perseguição dos invasores, o rei Mataca recebeu de presente, do seu homólogo Mbavala, uma bela donzela para casar, uma enorme estátua de pau-preto com a sua figura «estampada» no tronco e teve de volta meia centena de mulheres da sua tribo que serviam de escravas nas residências oficiais dos membros da corte dos Makondes. Para além deste acto, houve uma cerimónia tradicional de firmamente de amizade entre as duas tribos, onde os curandeiros de ambos os lados foram convidados a oferecerem os seus préstimos por forma a abençoar aquela amizade que nascia e a garantir por via mágica a sua renovação de geração em geração até ao mais infinito.

No último dia da estadia do rei Ajaua nas terra dos Makondes, o sol nasceu muito quente e os seus raios brilhavam intesamente resplandescendo manjestosamente sobre o tapete verde da floresta. Um grupo de flamingos sobrevoou silencioso a povoação e, no fim, aterrou numa pequena lagoa que se achava no extremo sul da palhota do rei Mbavala. Um grupo de crianças nuas e desnutridas brincava debaixo do sol em frente da palhota do chefe dos guerreiros Makondes e dois cães vadios atravessaram o terreiro perseguindo-se numa empolgante brincadeira. Dois guerreiros ajaua munidos de lanças afastaram-se repentinamente da porta da quarta palhota real. A porta abriu-se e o velho Mataca saiu seguido pela rapariga oferecida pelo seu homólogo Makonde. De olhos cerrados, o rei aspirou o ar frio do planalto, lançou um olhar apreciador ao seu presente e caminhou para o terreiro, onde a sua corte e os donos da terra o esperavam para a despedida. Ao chegar, foi servido um acento no alpêndre improvisado para a despedida. Pouco tempo depois, o kôta Mbavala ergueu-se e discursou para o seu povo agradecendo o apoio dos Ajaua e pedindo às duas tribos para que valorizassem a amizade conquistada contando a sua história às novas gerações. Já perto do fim do discurso, a sua voz ficou demasiadamente trémula e, nesse momento, foi interrompido por um seu funcionário que o encaminhou ao acento. Quando ia se sentar, o chefe dos guerreiros quis apoia-lo, mas o ancião apartou-o com os braços fazendo um gesto de protesto de quem diz não sou tão velho para precisar de apoio para se acomodar. De seguida, o som dos batuques irrompeu o espaço reservado para a despedida e um grupo de dançarinos começou a dançar no meio da roda humana que assistia ao espectâculo rindo e cantando. Ao cessar o tam-tam dos tambores, o kôta Mataca fez um breve discurso agradecendo a hospitalidade, os presentes oferecidos e a libertação das mulheres da sua tribo feitas escravas muito antes da invasão Nguni. No fim, prometeu aos Makondes retribuir o gesto da devolução das escravas, defendendo que já não havia mais razões para as duas tribos manterem a prática de captura de mulheres das duas tribos para fins de escravatura.

O rei foi interrompido por uns aplausos que soaram de forma entusiástica. Contudo, quando os aplausos desvaneceram, o kôta retomou o discurso agradecendo vezes sem conta tudo quanto o povo Makonde havia lhe proporcionado. Dali, as duas cortes abandonaram o terreiro enquanto o rufar dos tambores se faziam sentir novamente e encaminharam-se na saída da povoação. Ao aproximar as paliçadas que circundavam a povoação, protegendo os habitantes contra os animais bravios, os dois reis apertaram-se as mãos efusivamente em sinal de despedida final e o kôta Ajaua deu meia volta e começou a caminhar juntamente com a sua corte e os seus guerreiros escoltando-o em todos os lados. O velho Mbavala não tinha ainda voltado para a povoação e se encontrava petrificado no sitio onde havia se despedido do amigo Ajaua, olhando-o de longe enquanto desaparecia por entre árvores frondosas e arbustos de meia altura que emergiam quase por toda a floresta. Quando os visitantes desapareceram, por completo, deixando a sua atrás vozes entrecortadas e trazidas pelo o vento, o velho encaminhou-se ao terreiro, onde pôs-se a assistir mais uma sessão de mapico até ao entardecer.

Passados muitos anos, a amizade das duas tribos ainda continua manifestando-se sob forma de huvilo e a sua genese corre de boca em boca entre as novas gerações de Makondes e Ajauas.
- Allman Ndioko, Moçambique, 17/05/2005

VOCABULÁRIO:
Huvilo - Uma espécie de amizade carregado de aspectos cómicos e menos sérios;
Makondes Grupo étnico de Moçambique localizado no planalto de Mueda, província de Cabo Delgado. Note-se que existe na República da Tanzania outro grupo de Makondes conhecido por Makondes da Tanzania e que é originário do actual planalto de Mueda.
Ajauas - Grupo étnico de Moçambique localizado no planalto do Niassa, no norte do país.
MbavalaRei do povo Makonde.
Mataca Rei do povo Ajaua.
Kôta Pessoa mais velha que pode ser pai, mãe, avô, tio, etc.
Bangui Soruma ou melhor cannabis sativa;
Mula Árvore frondosa e muito alta frequente no planalto de Mueda. Entre os Makondes de Moçambique a Mula servia, desde os tempos remotos até altura da independência nacional, para sinalizar campas nas grandes florestas do planalto;
Lipalapanda – Chifre de antílope, normalmente, usado para anunciar uma festa ou animar uma sessão cultural;
N’tela Erva medicinal que serve para curar alguma infermidade ou proteger qualquer mal. Normalmente tem tido efeitos mágicos.


11/19/09

O Monte Liungo

Ao longo da baixa do planalto makonde, para quem vai a actual aldeia Lutete, precisamente na povoação de Uavi, fica o monte Liungo. No passado muito distante, Liungo foi um lugar sagrado e procurado pelos aldeões do planalto, aventureiros swahilis e makondes de Tanzania, parentes dos makondes de Moçambique, para a realização de preces para, espantar maus espiritos, curar enfermidades, obter sorte na caça e nas viagens, alcançar a prosperidade, em fim, preces para diversos domínios da vida humana. Homens e mulheres vinham de todos cantos e subiam até ao cume da montanha, onde suplicavam e deixavam oferendas, como: pólvora, tecidos, espingardas, dinheiro, estátuas de pau-preto, máscaras feitas de madeira preciosa, ouro, pedras preciosas e diversos objectos de adorno. Todos pedidos feitos na montanha era realizados e quem prometesse algo em forma de oferta e no fim ficasse sem cumprir morria ou desaparecia simplesmente, podendo, às vezes, ser avistado deambulando pela vegetação que cobre o monte Liungo. Contudo, Liungo tinha também outras funções sociais: No fim de Outubro, por exemplo, o cimo da montanha cantava ú,ú,ú... sendo de tempo em tempo acompanhado de um vúúú..., vúúú..., vúúú...; Estes sons eram emitidos dia e noite anunciando à chegada da época da abertura de machambas e da consequente queima de mani. Assim, nos dias subsequentes era frequente avistar aldeões de várias povoações empunhando enxadas e catanas e dirigindo-se no coração da floresta. Quando o canto da montanha cessava, logo a chuva caia e a felicidade erradiava os corações dos camponeses. Este fenómeno repetiu-se gerações e gerações.

Mais tarde, com o passar dos tempos, no sopé da montanha foi construida uma povoação pequena de forma circular e habitada maioritariamente por makondes da linhagem vanamuegùa que se dedicava essencialmente a agricultura, caça, colecta de mel e artesanato. Para além destas ocupações, alguns aldeões dedicavam-se a actividade de guia levando forasteiros ao cume da montanha para a realização de preces ou entrega de oferendas aos espiritos do monte.

Reza a lenda que, uma certa noite de verão e de céu salpicado de estrelas chegou na povoação um bando de oito aventureiros swahilis carregando fardos enormes contendo panos, sal, álcool, tabaco, pólvora, espingardas e cachimbos para a venda. O bando pernoitou na povoação, onde foi tratado com civilidade e durante a conversa com os aldeões ficou a saber da existência de preciosidades na montanha. Nisto, três dias depois os aventureiros venderam as mercadorias e atarde foram despedir-se ao nkulungwa da aldeia visivelmente emocionado.

- Deus queira que a sua sábia chefia se prolongue por mais anos da sua vida e que os jovem da sua linhagem venham seguir os teus ensinamentos. – Disse de viva voz um dos aventureiros assim que entraram no quintal do nkulungwa.

- Que os corações dos jovens makondes te ouçam e que assim queiram os espiritos dos antepassados.

- Que assim seja! – Disse alguém dentre os visitantes.

O ancião serviu aos visitantes duas camas de lutandove e depois sentou-se numa cama posta no beiral da casa principal enquanto os outros emitavam-lhe o gesto.

- Muito bem. – Disse o nkulungwa com voz trémula de extrema velhice. - Em que vos posso ser útil, meus jovens?

- Vinhamos despedir. – Respondeu um dos visitantes e de seguida acrescentou. – Cumprimos integralmente as nossas intenções e para finalizar gostariamos de chegar ao monte para suplicar aos espiritos a proporcionar-nos uma viagem sem perturbações.

- Isso é muito simples. - Balbuciou o nkulungwa. – O Kwavango, um dos guias da povoaçao levar-vos-á ao monte.

- Uma vez mais agradecemos a sua bondade.

- Não têm que agradecer. – Sorriu. – Nós somos assim... hospitaleiros, mansos, bondosos, tolerantes, mas maus quando alguém provoca-nos.

Todos riram perdidamente e no fim, o nkulungwa chamou o guia; Apresentou-o aos forasteiros e depois, disse:

- Idem em paz e que os espiritos dos ancestrais venham proteger-vos.

O ancião fez uma pausa. Apoiou-se ao braço de um dos netos, fixou os pés no solo e quando certificou-se de ter pisado seguramente o solo, ergueu-se lamentando uma dor infernal na coluna vertebral. Fez uma cara feia, pegou na sua bengala e advertiu:

- Idem em paz e não deixem que a cobiça vos cegue...

Deu costa os visitantes com muita dificuldade e lentamente caminhou parando em cada três passos para repousar. Ele era muito velho. Tinha a face tatuada e cheia de rugas. A boca era desdentada e chupada.Tinha um corpo magro e curvado.

Quando o nkulungwa entrou numa das palhotas, os visitantes deixaram o quintal rumando à montanha guiados pelo Kwavango. Andaram muito tempo num caminho estreito ladeado de capim alto e mais tarde iniciaram a subida da montanha esquivando pedras soltas postas ao longo do caminho.

Entretanto, subiram seguindo um atalho alcantilado que circundava o monte numa subida quase infindável. Já no meio do monte começaram a sentir o ar fresco e a visualizar a enorme floresta que se estendia de todos lados até ao horizonte. Pararam por alguns instantes para descansar. Era já atarde. O sol luminoso de Junho derramava os raios sobre o planalto. No entanto, prosseguiram a marcha caminhando lentamente ao lado da ravina que circundava o monte. Após algumas horas os visitantes alcançaram com muita dificuldade o cume da montanha. Deixaram as trouxas no chão, descansaram algum momento e de seguida, prepararam-se para entrar no local sagrado...

O local era uma gruta com um enorme alta natural, onde podia-se vislumbrar diversos objectos preciosos ofertados por gente de todos cantos. Todas aquelas relíquias eram protegidas pelos espiritos, sendo impossível a sua retirada da caverna, pese embora o seu valor cultural e comercial.

Nisto, os visitantes ao entrar no interior da gruta e quando lá se encontraram ficaram estupefactos com a presença de objectos valiosos naquele lugar. Um dos visitantes aproximou-se a um punhal de ouro puro, olhou-o com manifesto interesse e no fim, fez movimento para tocar. Nesse momento o guia gritou:

- Não! Não toques no objecto. Ele é sagrado e quem tocar será amaldiçoado.

O visitante hesitou, mas depois encorajado pela cobiça tomou o objecto e começou a troçar o guia em swahil. Kwavango afastou-se da gruta todo medroso e fugiu a sete pés, tendo em seguida escorregado e caido na ravina. No entanto, na gruta os visitantes pilharam os objectos sagrados e sairam para iniciar a descida da montanha. Próximo a gruta prepararam pequenos fardos, carregaram nas costas e desceram o monte. Enquanto desciam, o céu ficou vermelho e nuvens coloridas aproximaram o monte cautelosamente. Um bando de aves cruzaram o céu piando deseperadamente e de súbito, uma trovoada ensurdecedora rasgou o céu quatro vezes e os homens que desciam o monte desapareceram misteriosamente. A aldeia ficou apavorada. No monte uma nuvem vermelha cobriu o cume durante algum momento.

Dias depois, no monte passaram a acontecer coisas estranhas e de arrepiar os cabelos. Ao anoitecer ouvia-se gritos fortes de homens clamando deseperadamente por um socorro. Ouvia-se também sons de correntes metálicas e chicotadas. Meses depois, seres estranhos e acorrentados nos pés e braços desciam da montanha no meio das noites enluaradas e faziam passeatas na povoação semeando terror e mal estar nos aldeões.

Após um trabalho árduo de expulsão de espiritos perversos e protecção da povoação por meio da magia negra, a vida voltou à normalidade.

No entanto, passadas duas gerações fenómenos estranhos voltaram a manifestar-se na montanha. Nas manhãs no cume do monte eram avistadas roupas brancas lavadas recentemente e estendidas nos ramais dos arbustos próximos à gruta. Quando chovesse as roupas estendidas desapareciam misteriosamente voltando a se avistar assim que precipitação cessasse. Nas noites o cume era iluminado por enorme linguas de fogo que se estinguiam ao alvorecer. Entretanto, o local foi proibido e os fenómenos estranhos e arrepiantes continuaram até os dias que correm.
- Allman Ndyoko, Moçambique, 17/11/2009.

Glossário:
Lutandove – Cama composta de base de estacas e atravessada com cordas tecidas compalha;
Nkulungwa – Chefe da povoação;
Swahil – Lingua falada na Tanzania;
Mani – Ramais de árvores abatidos na abertura de machambas;
Vanamuengùa – Linhagem Namuengùa.

11/14/09

A bandeira Lusitana



O sol caia lentamente no poente colorindo o ambiente de tom alaranjado, quando inesperadamente um emissário branco e um homem makonde desembocaram na povoação de Mbavala portando uma mensagem do major Neutel de Abreu, acampado à escassos metros da entrada do planalto makonde com um efectivo militar de mais de duas centenas de homens brancos. Os dois estranhos atravessaram a aldeia em diagonal em direcção ao terreiro onde ficava a casa do nkulungwa Mbavala e outros parentes seus com laços consanguíneo. Enquanto caminhavam entre as casas da povoação o homem branco ia virando atracção, sendo, de quando em vez, apreciado com excessiva curiosidade como se estivesse em exposição. Quando chegaram a casa do Mbavala foram recebidos pelos súbditos do ancião sem emoção, pois meses anteriores haviam corrido em todo planalto notícias de aproximação de um contigente militar de homens brancos armados até aos dentes e que haviam subjugado os makondes da zona leste dos contrafortes do planalto. Segundo as mesmas notícias, grupos de infantaria e artilharia haviam respondido barbaramente alguns ataques perpetrado por nativos inconformados com a presença dos brancos que até já impunham novos valores que contrariavam, de certa medida, as expectativas dos diversos chefes das linhagens que tinham em seu poder o controlo das rotas do comércio clandestino praticado por swahilis, árabes do Zanzibar, povos do Madagáscar e alguns nativos.

Entretanto, os visitantes foram servidos uma cama de lutandove para se acomodarem e um jovem de estatura baixa, postura forte, dentes afiados e rosto tatuado afastou-se dali e entrou numa das casas que se encontrava no enorme quintal do nkulungwa Mbavala. Pouco tempo depois, o jovem voltou a juntar-se a outros três súbditos que encontravam-se sentados no beiral de uma das casas que aparentava ser a principal. Volvido algum momento, o nkulungwa atravessou a porta e marchou lentamente ao encontro dos visitantes.

- karibo, karibo. - Sejam bem-vindos. – Disse Mbavala acomodando-se numa das camas postas ali para si. De de seguida, quis saber. – O que vos traz nestas bandas?

- O major Neutel de Abreu manda informar que dentro de dias chegará um contingente militar que virá instaurar uma nova vida no planalto e pede a lealdade de todos chefes, em especial do senhor. – Disse o emissário de viva voz e acrescentou. – Qualquer tentativa de sublevação será esmagada impiedosamente pelas nossas forças e os chefes de tais sublevação serão presos e deportados para longe dos seus súbditos.

Mbavala manteve-se calado durante todo tempo em que o homem branco esteve a discursar e depois manteve-se atento ao interprete que era o homem negro que vinha na companhia do emissário. Entretanto, após a interpretação do discurso que foi feita de forma quase incoerente pelo homem makonde, que a avaliar o seu conhecimento rudimentar da lingua portuguesa não havia dúvidas que o sujeito aprendera a lingua do Camões com os padres católicos em Porto Amélia, terra até então desconhecida pela maioria dos makondes, nkulungwa Mbavala ergueu-se apoiando-se com uma bengala de pau-preto esculpido com esmero. Cruzou um braço nas costas e passeou lentamente pelo quintal enquanto o branco e o interprete permaneciam sentados aguardando o seu pronunciamento. O Mbavala estava perturbado, mas fez um esforço para não demonstrar aos visitantes. No entanto, enquanto passeava pelo quintal com a mente a fervilhar de tanto procurar um coerente pronunciamento face à afronta do major Neutel de Abreu, baixou os olhos e volvido algum momento, dirigiu-se ao emissário erguendo os ombros orgulhosamente e levantando o queixo com altivez e ar de desafio.

- Diga ao seu chefe que recebi a mensagem. – Olhou muito atentamente nos olhos do branco e prosseguiu. – Amanhã farei deligências para informar aos outros vakulungwa e dentro de sete dias receberá a nossa resposta.

- De que forma o major terá a tal resposta? – Quis saber o emissário com uma ponta de incredulidade.

Mbavala sentou-se entregando a bengala um dos súbditos. Humedeceu os lábios com a lingua e pensativamente, respondeu:

- Será muito simples. O nosso silêncio no sétimo dia significará o nosso consentimento à nova autoridade e a nossa presença no vosso acampamento será o sinónimo de recusa à tal dita autoridade branca.

- Muito bem. – Disse o branco torcendo o nariz. – As tuas palavras serão transmitidas ao major.

Mbavala não pronunciou uma palavra se quer e nisto, o emissário e seu acompanhante despediram-se do velho e sairam da aldeia admirando a grandeza e beleza da povoação e o prestígio que gozava o nkulungwa que há pouco tempo haviam tido a oportunidade de o conhecerem. Ao atravessarem o cerco da aldeia feita de troncos enormes de árvores seculares para impedir a entrada de animais ferozes e gente intrusa, os dois homens embrenharam-se pela floresta adentro deixando-se de avistar-se, devido as trevas que já começavam a cobrir o ambiente.

Já na povoação, Mbavala reuniu imediatamente os anciãos que compunham o conselho da aldeia, deu a conhecer a mensagem do major Neutel e rapidamente foram tomadas as posições cuja a realização dependia muito do pronunciamento dos demais vakulungwa das povoações de todo planalto makonde, incluindo os chefes do longinquo kundonde. Assim, uma vez que o nkulungwa Mbavala gozava de uma boa reputação entre os makondes do planalto e era o mais velho de todos vakulungwa e sua povoação era a mais expressiva do ponto de vista de grandeza e do número de aldeões, três dias depois houve na sua aldeia o grande encontro dos régulos makondes. Estavam no encontro os régulos Mbavala e seu súbdito Chilavi, Mbomela, Mbalale, Likama, Negomano, Machangano, Lidimo, Chipungo, Neengo, Nkapoca, Ntchingama, Kavanga, Nkwemba e Nachomwe.

O encontro começou, no terreiro da aldeia, no meio da manhã de um dia calmo e de céu coberto de nuvens brancas e cinzentas. Após um longo discurso do Mbavala explicando a razões que haviam norteado a convocação daquela historica reunião, os convidados foram chamados a tomar da palavra. Nisto, o nkulungwa Mbomela ergueu-se e com a voz fremente de emoção, disse:

- Caros irmãos! Nos tempos passados os nossos ancestrais resistiram a qualquer tipo de subjugação de outros povos. Hoje somos afrontados nas bárbas das nossas terras e da nossa gente por um povo branco e desconhecido. Face a esta infame provocação proponho ao povo makonde à resistência às intenções destes forasteiros que pretendem tomar de nós, de forma astuta, as nossas terras, o nosso povo obediente e respeitoso, o nosso prestígio secular, as nossas relações comerciais estabelecidas há séculos com povos de terras distantes e tudo o que é nosso e belo.

Mbomela sentou-se. O ancião havia se emocionado demasiadamente e a pressão arterial subira vertiginosamente. No entanto, Mbalale levantou-se e dirigiu-se aos presente de forma vigorosa:

- Estas terras e esta gente que nelas vive é nossa por herança. – Fez uma pausa para ordenar o seu raciocínio e logo voltou ao ponto onde havia interrompido. – Os nossos ancestrais deram-nos de presente pelo amor que tinham por nós, pela confiança e certeza de que eramos capazes de conduzir os destinos da nossa gente num clima de paz e harmonia social. Por todas estas e outras razões eu, Mbalale, nkulungwa de kunambalale, discordo categoricamente qualquer presença nas nossas terras de qualquer povo com intenções de subjugar-nos.

Nkapoca ergueu-se assim que Mbalale acomodou-se tremendo de extrema velhice. Muito calmamente o ancião disse:

- Estou sem palavras! As palavras que havia reservado foram-me tiradas pelos ilustres que por aqui falaram de forma sábia. Assim, sem mais demora digo: como os brancos querem guerra, então guerra deverão ter. Eu estou disposto a sacrificar gente da minha povoação em número que se julgar conveniente... Esta terra é nossa e não concordo que sejamos arrancados sem mais e nem menos!

No entanto, muitos vakulungwa discursaram naquela manhã histórica e todos eram favoráveis à afronta ao inimigo. Nisto, Mbavala pediu a palavra e ergueu-se vagarosamente. De seguida, olhou aos seus compatriotas e de forma calma confessou:

- Estou extremamente admirado pela bravura de todos vós. – Baixou os olhos, levou uma mãos nas costas e continuou erguendo os olhos. – Contudo, confesso-vos que estou com medo. Esses homens brancos fizeram chacina na zona leste do nosso planalto tudo porque, os nossos irmãos se rebelaram. Se tais irmãos tivessem ponderado a sua capacidade, de ponto de vista de meios de combate, se calhar teriam agido de maneira diferente ao invés de se entregarem ao fogo como se tratasse de carne de canhão.

Houve um murmúrio ensurdecedor, mas logo o velho Mbavala soube refrea-lo usando a sua carismática diplomacia.

- Esses homens brancos trazem armas enormes que cospem fogo mortífero e uma infinidade de armas ligeiras extremamente potentes mais que as nossas de fabrico caseiro ou adquiridas junto dos comerciantes estrangeiros. Por isso, eu não gostaria de ver os nossos jovens a morrer por uma guerra possível de evitar.

Houve um grande protesto contra o discurso do ancião, chegando alguns a chama-lo abertamente de cobarde. Contudo, Mbavala, continuou:

- Pelo que ouvi do emissário, os brancos pretendem trazer outro dinamismo na nossa sociedade preservando as estruturas tradicionais, promovendo o convívio pluri-étnico, respeitando a natureza da nossa organização social e os diferentes valores humanos da nossa sociedade. O que não acho ser má ideia!

Mbavala calou-se. O gesto foi imitado pelos demais participantes do encontro. Depois, o velho prosseguiu o discurso procurando mostrar aos demais vakulungwa a sua visão pacifista.

- Por todas estas razões, eu Mbavala, sou de opinião que não afrontemos o inimigo através de uma guerra, mas sim deixemos que venha conviver connosco através de um processo contínuo de aprendizagem mútua e assim evitaremos o derramamento de sangue.

O velho sentou-se e o terreiro foi invadido por uma onda pacífica de protestos. Entretanto, Ntchingama pediu aos demais para que se mantessem calado e depois, em voz baixa e tom solene, como de costume, disse:

- O nosso irmão Mbavala pede-nos que aceitemos os brancos que veem, tudo para que a nossa zona mantenha a paz e harmonia social que sempre se caracterizou. Cá por mim, concordo plenamente com a visão e expectativa do nosso irmão. Pode ser que a maioria de nós esteja errado da forma como encaramos esta situação e também é normal que os nossos espiritos exaltem-se demasiadamente. Contudo, devemos reconhecer que o inimigo tem um poder bélico e militar mais do que nós. Assim sendo e, na minha opinião, qualquer tentativa de resposta por meio de guerra o nosso povo sairá em desvantagem, pois trata-se de uma situação que nenhum de nós preveu. – Fez uma pausa para ordenar o seu raciocínio e continuou. – Se formos a ver a nossa capacidade de resposta veremos que é extremamente insuficiente porque as nossas previsões não iam mais do que uma possível guerra com uma tribo distante e gente com recursos similares aos nossos. Analisando desta forma a situação, sou obrigado pela circunstância a concordar com o ponto de vista do nosso irmão Mbavala. Não à guerra! Vamos evitar o derramamento de sangue no seio do nosso povo. Vamos aceitar conviver com o estranho e no fim de tudo, independentemente das suas atitudes futuras, verão que sairemos a ganhar e as gerações futuras saberão compreender a nossa posição e valorizarão o nosso sacrifício.

Dito isto sentou-se. O terreiro ficou silencioso durante alguns segundos e as intervenções que seguiram subscreveram taxativamente à intervenção do Ntchingama. Assim, passado algum momento, a reunião chegou ao fim e os régulos voltaram às suas povoações.

Ao entardecer aquele dia, o céu ficou sinistro e rugiu, vezes sem conta, como se lá lançassem dezenas de tambores vazios. Trovoadas ensurdecedoras e relâmpagos aparentemente mortíferos coriscaram os céus emitindo faíscas assustadoras que formando alternadamente ângulos salientes e reentrantes acabavam se lançando rapidamente no coração da floresta. Este espectáculo natural cheio de luz e cores durou muito tempo até que ao principiar a noite uma chuva assustadora despenhou do céu ruidoso e luminoso. Choveu torrencialmente toda noite criando cursos de água que ameaçavam derrubar palhotas erguidas nos caminhos da água e as que tinham capim de cobertura reduzido. Ao alvorecer, a chuva parou e um belo dia nasceu com o céu azul e claro.

Uma semana depois, demanhã, o contingente militar português entrou no planalto makonde sem resistência e sob o olhar indiferente do Mbavala e apreciação curiosa dos aldeões. Naquela manhã calma e clara, o contingente militar marchou orgulhoso no meio da povoação exibindo, sobretudo, a sua superioridade militar e bélica e no coração da actual vila de Mueda, próximo da fonte Mweda, acampou içando de seguida a bandeira lusitana, numa acção clara de demonstração da mudança do curso da história do povo nativo.
- Allman Ndyoko, Moçambique, 04/03/2008

GLOSSÁRIO:
Lutandove – cama composta de base de estacas e atravessada com cordas tecidas com palha;
Karibo – Bem-vindo; Servido;
Kunambalale – Povoação de Mbalale;
Vakulungwa – O plural de nkulungwa.